Projeto Orion: os desafios, os custos e os benefícios de uma infraestrutura inédita no mundo

A pandemia de covid-19 escancarou os gargalos da ciência voltada à saúde no Brasil. Um destes é a falta de um laboratório nível NB4 nacional, o máximo patamar de biossegurança. Desde então, o país está desenvolvendo o Projeto Orion para criar o primeiro laboratório NB4 no hemisfério sul, e com uma especificidade: será o primeiro NB4 do mundo associado a um acelerador de partículas, o Sirius, acelerador de luz síncrotron de última geração localizado no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas.

O projeto é ambicioso e, caso concretizado, pode colocar o país numa posição de liderança em pesquisas biotecnológicas, atraindo pesquisadores e instituições do mundo inteiro ao mesmo tempo em que promove a engenharia de ponta brasileira durante sua construção. Entretanto, o alto custo faz com que o Orion divida opiniões dentro da comunidade científica, que vê o orçamento destinado para o campo se tornar cada vez mais instável desde a crise de 2015.

Para debater esse tema, o Núcleo de Estudos Avançados do Instituto Oswaldo-Cruz, ligado à Fiocruz, realizou o debate virtual “Projeto Orion e o futuro da CT&I no Brasil”, onde o Diretor-Geral do CNPEM, Antonio José Roque, titular da ABC, apresentou o projeto e respondeu às perguntas de sete outros cientistas: os Acadêmicos Renato Cordeiro, coordenador do debate; Aldo Zarbin, presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ); Carlos Menck e Samuel Goldenberg, ambos ex-presidentes da Sociedade Brasileira de Genética (SBG); Carlos Morel, ex-presidente da Fiocruz; e Jorge Guimarães, ex-presidente da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii). O debate também contou com o pesquisador José Paulo Gagliardi, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Virologia (SBV).

O que é o projeto Orion?

Assim como a constelação de Orion está localizada diretamente à frente da estrela Sirius, também o novo laboratório estará em frente ao acelerador de partículas. Dessa forma, as pesquisas realizadas com materiais biológicos de alta periculosidade – e, portanto, de alto interesse para a segurança nacional – poderiam ser ainda mais eficazes, uma vez que o Sirius permite a geração de imagens com uma resolução que nenhuma outra infraestrutura permitiria.

“O Sirius é uma fonte de luz síncrotron de quarta geração. Ele permite acelerarmos partículas, em geral elétrons, mas também pósitrons, até uma velocidade próxima à da luz. Quando você desvia a trajetória dessas partículas de forma controlada, elas emitem fótons ou radiação eletromagnética que continuam viajando na tangente e são captadas por sensores. Essa é a tecnologia com a maior capacidade de geração de raio-x para uso amplo no mundo hoje”, explicou Antonio José Roque.

O Acadêmico traz dois exemplos de utilização prática dessa tecnologia em pesquisas. “Uma é a capacidade de gerar imagens tridimensionais, assim como uma tomografia, com altíssima resolução para materiais orgânicos ou não orgânicos. Outra é a possibilidade de focalização microscópica, o que permite medidas de varredura, também com altíssima resolução. Essas características são úteis para estudarmos desde baterias até vírus”.

O projeto Orion prevê a construção de três linhas de luz conectadas ao Sirius: a linha Hibisco será de alta energia e possibilitará tomografias de alta resolução em pequenos animais; a linha Timbó, por sua vez, será de energia intermediaria, ideal para fazer tomografias de órgãos e tecidos com resolução celular; Já a linha Sibipiruna, de baixa energia, será voltada à análise de células individuais, com resolução ao nível das organelas. “Toda a ideia do Orion é a capacidade de desenvolver técnicas diferentes para analisar materiais diversos nas escalas de tamanho, conectando o macro com o micro”, resumiu Roque.

Os desafios da construção

Criar um projeto inédito envolve fazer perguntas inéditas e buscar soluções igualmente inéditas. Já que não existe NB4 no país, os pesquisadores envolvidos no projeto precisaram buscar consultores internacionais em biossegurança, visitando laboratórios NB4 ao redor do mundo. “Uma das coisas que percebemos foi que a noção de que seria necessário um aparato de guerra para proteger as instalações é fantasiosa. Os NB4 do mundo não estão em regiões isoladas ou protegidos por tanques, isso os inviabilizaria, eles estão em meio às cidades e universidades e isso em nada compromete sua segurança”, defendeu Roque quando questionado pelos debatedores.

O Acadêmico frisou que o Brasil precisa trabalhar numa legislação de biossegurança, na qual o CNPEM pode ter participação, mas não como formulador principal. O país ainda não tem sequer diretrizes estabelecidas para laboratórios NB3. “No momento estamos nos baseando nas guidelines da Organização Mundial da Saúde, dos EUA e do Canadá, mas uma hora será necessário que o Brasil crie uma diretriz própria”.

Mas a experiência internacional só pode nos levar até certo ponto, já que nenhum NB4 no mundo é conectado a um acelerador de partículas. Dessa forma, o grupo está desenvolvendo inovações em infraestrutura e protocolos específicos para o Orion, que estão sendo acompanhadas por avaliadores externos internacionais. Também foi construído, e já está em pleno funcionamento, um laboratório de treinamento, que reproduz as condições do Orion para capacitar recursos humanos a atuarem com materiais de máxima biossegurança.

Essa etapa de capacitação, de acordo com Roque, deve ser uma das prioridades nacionais se o país quiser utilizar o Orion no máximo de sua capacidade. “Assim como ocorreu com o Sirius, num primeiro momento o equipamento foi subutilizado porque a própria comunidade não estava preparada para lidar com ele. É preciso trabalhar para criar uma cultura que estimule os pesquisadores a fazerem perguntas que possam ser respondidas com o Orion, não se trata de produzir mil artigos iguais aos que fazíamos antes, mas de gerar novos artigos inovadores”, defendeu.

Outro ponto bastante particular em que o país precisará investir é no desenvolvimento de biotérios de primatas não-humanos. Atualmente o Brasil não dispõe de infraestruturas que permitam testar nesses animais, que são uma fase prévia ao teste em humanos, e isso cria um gargalo que é suprido pela oferta externa. Roque negou que o CNPEM tenha capacidade de criar infraestruturas próprias para isso, mas estimulou que o país invista nessa capacidade em outros centros. “No início esse problema nem estava em nosso radar, mas os consultores estrangeiros apontaram: ‘como assim vocês vão construir algo desse porte e não vão contar com a capacidade de testar em primatas?’, eles indagaram”.

O eterno dilema do custo-benefício

O Acadêmico Aldo Zarbin colocou na mesa a questão do orçamento, que tanto tem dividido os cientistas. Ele pediu que Roque explicasse qual o valor adicional que o projeto precisa por ser acoplado a um acelerador, em comparação a um NB4 tradicional. Segundo o Diretor-Geral do CNPEM, dos valores totais envolvidos, que giram em torno de R$ 1,5 bi, cerca de R$ 200 mi são adicionais por conta da ligação com o Sirius, ou seja, 15% do orçamento.

“Poderíamos fazer algo menos ambicioso? Poderíamos, mas aí jogaríamos fora a oportunidade de ter uma infraestrutura única no país, capaz de competir com a ciência de ponta do mundo inteiro. São valores altos num cenário em que o investimento federal em ciência está cada vez mais dependente do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mas precisamos nos perguntar o que almejamos ser em ciência. Os recursos para o Orion não chegam a 0,1% do PIB nacional. Se temos realmente o objetivo de chegar a 2% do PIB para a ciência até 2035, isso não deveria ser uma limitação”, defendeu Antonio Roque.

Assista ao debate completo:

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