Leão 14, um Papa prático para tempos conturbados

Na Igreja, os símbolos falam alto.

O novo papa, Robert Francis Prevost, usou alguns deles logo na sua primeira bênção aos fiéis como Papa Leão 14. Discursou em italiano, alternou levemente com o espanhol e terminou em latim. Usou a língua franca (embora não oficial) do Vaticano, depois o idioma mais falado pelos católicos no mundo e finalizou com um aceno ao vernáculo milenar e oficial do catolicismo romano.

Ainda nesse gesto simbólico, resgatou a mozeta papal — um tecido vermelho e formal abandonado por Francisco — utilizou uma cruz dourada e, por fim, escolheu o nome de outros treze papas antes dele: Leão. Os sinais de conciliação estavam no ar. Porém, essa é a graça dos símbolos. Eles falam — mas também ocultam.

Prevost é o papa mais jovem dos últimos 30 anos e se filia a uma tradição papal de protagonismo e reforma associada ao nome Leão. 

O Papa Leão 13, por exemplo, escreveu uma carta contra a escravidão no Brasil em 1888, publicou a Rerum Novarum, encíclica que norteou a doutrina social da Igreja por mais de um século, e iniciou o diálogo com o mundo moderno, inclusive se posicionando (ao lados dos mais pobres) diante das transformações políticas e sociais da Europa do final do século 19.

Antes do papado, teve atuação pastoral significativa, embora sem obras de caridade amplamente documentadas como as atribuídas a outros pontífices. Um papa Leão é, historicamente, sinal de liderança firme e atuação transformadora. A título de curiosidade: o primeiro papa com esse nome, Leão 1º, enfrentou Átila, o Huno — um dos grandes terrores da Europa do século V — e é considerado um dos poucos a frear o avanço do guerreiro em direção a Roma.

Vale lembrar que o papado é uma das últimas instituições do mundo antigo a chegar praticamente intacta ao século 21 — e não por acaso.

A eleição de Robert Francis Prevost como Leão 14 reforça a Igreja Católica como uma ponte sólida entre diferentes eras e reafirma sua disposição de renovar seu papel histórico, cultural e político.

Aos 69 anos, Prevost encarna dualidades e complexidades típicas do nosso tempo.

É americano, mas tem dupla nacionalidade — tornou-se peruano em 2015. Serviu durante anos como missionário e bispo no Peru, um país majoritariamente católico, mas nasceu nos EUA, onde o catolicismo nunca foi religião majoritária. Até hoje, os EUA tiveram apenas dois presidentes católicos: John F. Kennedy e Joe Biden. 

Prevost foi bispo de chão de igreja no Peru, em regiões pobres como Chiclayo, mas também ocupou, antes de ser eleito papa, um dos cargos mais influentes da Cúria Romana: prefeito do Dicastério para os Bispos, o “ministério papal” responsável por coordenar a nomeação e supervisão de bispos em todo o mundo. E é um papa de Chicago, uma das metrópoles mais católicas dos EUA e, economicamente, uma das mais desiguais, com uma população negra grande e empobrecida.

À primeira vista, seria fácil aplicar a Leão 14 rótulos típicos, exaltando novidades e continuidades. A novidade: o primeiro papa nascido nos Estados Unidos — algo impensável para a Igreja durante boa parte do século 20, quando o país passou a exercer hegemonia global. A continuidade: foi rapidamente associado ao campo progressista, dada sua trajetória missionária com populações carentes e indígenas no Peru e sua proximidade com Francisco. Ambas as categorias dizem algo verdadeiro — mas são limitadoras.

No caso da Igreja, os rótulos da política contemporânea (progressista x conservador) e da identidade nacional não funcionam bem. Se fossem critérios determinantes, os últimos papas seriam todos italianos — a nacionalidade ainda predominante no Colégio de Cardeais. Uma divisão mais útil seria entre papas doutrinários versus pastorais, entre intelectuais versus pragmáticos. Por esse critério, Prevost é inequivocamente pastoral e prático. E essa talvez seja sua maior semelhança com Francisco.

Dos últimos dez papas, de Pio X a Francisco, Prevost é um dos mais ligados ao “chão da igreja”, possivelmente até mais do que Francisco, que liderava a maior arquidiocese da Argentina, Buenos Aires. Prevost era bispo em Chiclayo, uma diocese periférica. Bento 16 (Joseph Ratzinger) teve apenas cinco anos como arcebispo de Munique — sua carreira foi sobretudo teológica. João Paulo 2º era um intelectual, poeta e professor. Pio XI e Pio XII praticamente não tiveram experiência paroquial.

Já Prevost foi missionário, professor de seminário e prior-geral (líder global) da Ordem de Santo Agostinho por 12 anos. Depois, liderou a diocese de Chiclayo por outros nove. Durante esse período, teve forte envolvimento com organizações pastorais e religiosas. Foi feito cardeal só em 2023, e mesmo ocupando um dos cargos mais influentes da Cúria manteve presença pastoral ativa em Roma. É também o primeiro papa pertencente à Ordem de Santo Agostinho, algo extremamente relevante no campo da simbologia cristã. 

Agostinho, o santo fundador da ordem, foi um intelectual brilhante, mas teve uma vida pregressa marcada por inquietações existenciais e morais — teve um filho fora do casamento e combateu a rigidez doutrinária dos donatistas, que excluíam os pecadores da comunhão cristã.

Os agostinianos nasceram na Itália como união de eremitas voltados ao serviço comunitário, especialmente entre os pobres. Na sua primeira fala como papa, Prevost evocou Agostinho: “Com vocês sou cristão, e para vocês, bispo.”

A experiência prática e pastoral pesa muito na condução de um pontificado. Assim como Francisco, Prevost sabe que o catolicismo da vida concreta é diferente daquele ensinado nos seminários, especialmente os romanos. Ele confessou milhares de fiéis, acompanhou seus dilemas, guiou agostinianos e orientou bispos.

Apesar de ter doutorado em Direito Canônico, não é conhecido por debates teológicos ou morais. Sua atuação mais visível foi em questões concretas da vida da Igreja — incluindo a crise de abuso sexual. No Peru, chegou a ser acusado de acobertar casos, mas investigações conduzidas sob o pontificado de Francisco não encontraram elementos que o incriminassem.

Tendo atuado em dois contextos desafiadores — Peru e EUA — Prevost também esteve em meio a embates políticos contemporâneos. No Peru, declarou que os Fujimori deveriam pedir perdão público antes de retomar protagonismo político. 

Mais recentemente, compartilhou textos críticos ao vice-presidente dos EUA, J.D. Vance (um católico convertido) por sua posição sobre imigração e refugiados. Ainda assim, é improvável que Leão 14 se torne um grande reformador. Sua formação em direito canônico, além da graduação numa disciplina dura como a matemática, contribuem para um perfil moderado — difícil imaginá-lo indo além dos gestos que Francisco fez em direção às comunidades LGBT, por exemplo.

Se Francisco foi o papa da caridade, um homem que enfrentou os medos e fantasmas do presente, Leão 14 parece preferir acenos mais sutis — buscando ser ponte entre a tradição milenar e a vida prática dos fiéis. Sua eleição reflete o desejo do mais diverso Colégio de Cardeais da história de manter a continuidade das reformas sem arriscar um novo cisma, uma possibilidade real aventada entre os setores mais reacionários do catolicismo, especialmente nos EUA, que viam em Francisco um protocomunista.

Lá, há uma onda crescente de conversões à fé romana vindas da direita política, em busca de fundamentos religiosos para uma visão de mundo mais rígida. O vice-presidente J.D. Vance é um desses neoconvertidos.

Ao eleger um papa mezzo americano, mezzo peruano, a Igreja Católica mostra por que, apesar das perdas de fiéis e crises recentes, permanece como uma força histórica inescapável. Suas soluções de consenso tendem a parecer improváveis — mas acabam sendo inevitáveis.

Um papa americano e moderado pode ser o símbolo exato para tempos conturbados. Agora, é observar o que Leão faz, fala — e decide simbolizar.

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