João Gomes e o resgate da nordestinidade

Gravado no sítio histórico de Olinda, Dominguinho, o novo projeto de João Gomes, traz o cantor e compositor pernambucano ao lado do sanfoneiro sergipano Mestrinho e do soulman paulistano Jota.Pê.

É um projeto definido como “acústico”, no qual eles relêem canções de Gomes (Mete Um Block Nele, por exemplo) interpretam um forró de Mestrinho (Flor) e uma versão de Pontes Indestrutíveis, reggae/rock do grupo Charlie Brown Jr. – e aqui, temos um show particular de Mestrinho na sanfona.

Para quem ainda não conseguiu associar o nome João Gomes ao que ele faz – ou ao motivo da pompa do parágrafo anterior – vamos a uma pequena explanação.

Há pelo menos quatro anos, ele é um dos maiores fenômenos da chamada “nova música nordestina”. Foi o artista mais executado nas plataformas de streaming em 2021 e faz em média 20 apresentações por mês. No período de São João, por exemplo, esse número pode chegar a 50 shows em dois meses.

João Fernando Gomes Valério nasceu há 23 anos em Serrita, uma cidade a 352 quilômetros do Recife. Tinha sete anos quando a família (o pai, barbeiro; a mãe, agricultura) migrou para Petrolina, a 712 quilômetros da capital pernambucana.

11722 99d930c2 a770 9fe4 effa 83d2c38596d5

Os primeiros passos no canto foram dados na igreja, mas o universo artístico ainda não fazia parte do seu futuro. João foi estudar técnica em agropecuária no Instituto Federal do Sertão Pernambucano, ainda em Petrolina.

Em 2019, durante uma festa, tomou coragem e cantou uns forrós antigos de sua preferência. Fez tanto sucesso que os amigos o incentivaram a postar suas músicas no TikTok e no Instagram (as duas plataformas que, ao lado do YouTube, substituíram os barzinhos nos quais os diretores de gravadoras conheciam os talentos musicais do futuro).

Naquele ano, a canção Eu Tenho a Senha se tornaria um fenômeno de execução. (O vídeo ao vivo da música passou de 90 milhões de visualizações no YouTube.)

O jovem intérprete se esmerou no piseiro, uma variação do forró na qual a sanfona ganha o acréscimo de teclados e instrumentos de sopro. É algo bem próximo ao arrocha, estilo muito popular na Bahia, onde a seresta é turbinada por teclados e saxofone.

O repertório de João Gomes não se resume a canções da própria lavra. Ele fez releituras de Me Adora, de Pitty, e Amado, de Vanessa da Mata – que, agradecida, o recrutou para um dueto em Comentários a Respeito de John, de Belchior, em seu disco Vem Doce, de 2023.

João Gomes chama a atenção pelo vozeirão grave e forte. Os singles iniciais, ainda que populares, mostram o cantor brigando com o andamento das melodias. Há certos atropelos e às vezes não se entende o que se canta. Mas ele tem ganho adeptos de alta patente da MPB.

“João é um querido, talentoso e amigo, e também encanta pela humildade que desperta no primeiro contato. Torço muito pelo seu sucesso,” me disse Fagner, que o convidou para participar de um projeto de forró. “Ele caprichou demais,” diz o astro cearense.

João foi adotado não só por Fagner e Vanessa da Mata. Marisa Monte fez questão de ter João Gomes como atração em seu cruzeiro temático que singrou o litoral brasileiro no ano passado. Ana Cláudia Lomelino, outra intérprete da nova MPB (conhecida como Mãeana) criou uma combinação de piseiro e MPB no qual relê o repertório de dois “JG” – o Gomes e o Gilberto. Ela batizou o projeto como “pisa nova”.

Há, na obra de João Gomes, um importante resgate da nordestinidade. Mal comparando, ele tem hoje a mesma função que Luiz Gonzaga tinha nos anos 1940 e 1950: traduzir essa região para o sul do país.

João trata em suas letras assuntos de cunho amoroso (Meu Pedaço de Pecado, Dengo), mas não descuida de abordar temas do dia-a-dia da sua região. O maior exemplo está justamente em Eu Tenho a Senha, que fala de vaquejada (um esporte típico do Nordeste, onde dois cavaleiros perseguem um touro). Ou Coração de Vaqueiro e Laçou o Vaqueiro, que também abordam os temas da vaquejada.
O chapéu de couro que ostenta em suas apresentações atualiza a conexão com os costumes da região. Luiz Gonzaga (1912-1989), aliás, “canta” com João numa das versões de Eu Tenho a Senha. Ele foi ressuscitado através de inteligência artificial e ressurge nas apresentações ao vivo do cantor.

Mais que um superstar, João chega a ser um caso de segurança pública: a gravação de seu DVD mais recente, em 2022, atraiu 150.000 pessoas ao Marco Zero do Recife, tornando o local intransitável.

No Carnaval deste ano, também no Marco Zero, João trocou o chapéu de couro pelo chapéu de palha eternizado por Chico Science (1966-1997) e cantou A Praieira, hit de Chico e da Nação Zumbi.

O projeto de João Gomes ao lado de Mestrinho (um discípulo de Dominguinhos) e Jota.pe é um passo adiante na “MPBtização” de João. O tum tum tum do teclado eletrônico do piseiro cede espaço para uma sonoridade mais acústica.

Além disso, os companheiros de Dominguinho são figuras de ponta da MPB dita mais sofisticada. Mestrinho é um dos destaques de Tempo Rei, a última turnê de Gilberto Gil. Jota.pê, foi um dos vencedores da mais recente edição do Grammy Latino – ganhou em três categorias, entre elas Melhor Álbum de Música Popular Brasileira/Afro Brasileira pelo disco Se Meu Peito Fosse Mundo e Melhor Canção por Ouro Marrom.

O próprio João Gomes tem dado mostras significativas de melhora. O atropelo inicial deu espaço a um intérprete seguro, com boa desenvoltura de palco e conexão única com a plateia. O resto do Brasil precisa conhecer esse João.

The post João Gomes e o resgate da nordestinidade appeared first on Brazil Journal.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.