ARNALDO ANTUNES SE REVIGORA EM NOVO DISCO

Arnaldo Antunes tem estilo. O timbre de voz e o jeito de cantar se fazem reconhecer nas primeiras notas emitidas naquela frequência gutural inconfundível. Sua poesia, com influência do concretismo, tem identidade. A performance de palco e o jeito de dançar são próprios de sua persona artística. O visual é também uma marca forte (e distinta de seus contemporâneos da cena rock dos anos 80): sempre elegante, com corte de cabelo algo entre a estética new wave e o pós-punk, além de um figurino que não dispensa as camisas e a influência da alfaiataria japonesa.

O cantor e compositor de 64 anos carrega com ele todos esses elementos desde o começo da década de 80, quando era integrante dos Titãs. Não cabe, no entanto, a insinuação de que sua obra seja repetitiva. Ao contrário: Arnaldo sempre se renova esteticamente e seu recém-lançado álbum, Novo mundo, é exemplar de uma das guinadas mais radicais de sua carreira de mais de quatro décadas.

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Foto: Leo Aversa

A novidade já se anuncia no título do álbum, mas o sentido é duplo. Além de se referir à transformação do som, este nome é emprestado da primeira faixa do repertório e reflete sobre dois temas que perturbam a sociedade contemporânea: a crise climática e a hiperconectividade.

Depois de três anos imerso em um projeto intimista de piano e voz com o pernambucano Vitor Araújo – que desaguou em dois álbuns, Lágrimas no mar (2021) e Lágrimas no mar ao vivo (2024) –, Arnaldo ressurge elétrico, pesado e escoltado por uma banda com a formação instrumental clássica do rock: Kiko Dinucci (do Metá Metá) na guitarra, Betão Aguiar no baixo, Pupillo (ex-Nação Zumbi) na bateria e Araújo, agora também nos sintetizadores, além do piano.

O baterista assina também a produção e traz na bagagem as experiências recentes como produtor de artistas como Gal Costa, Erasmo Carlos, Céu e outros dois integrantes originais dos Titãs – Paulo Miklos e Nando Reis.

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Foto: Leo Aversa

Novo mundo tem a participação de um artista britânico, que é uma influência declarada de Arnaldo (na música e na moda) em duas faixas: David Byrne, ex-líder da banda Talking Heads e um incansável inovador da música pop mundial.

O álbum conta ainda com as colaborações inéditas do rapper baiano Vandal (mais conhecido, recentemente, pelas parcerias com o BaianaSystem) e da cantora e compositora carioca Ana Frango Elétrico. Nesse campo de experimentações, há uma zona de conforto: antiga parceira e companheira d’Os Tribalistas, Marisa Monte coassina e divide os vocais em “Sou só”.

Antunes conversou com a ELLE sobre mais essa metamorfose em sua carreira, a influência de Byrne, a parceria com Erasmo Carlos (que faleceu em 2022) na faixa “Viu, mãe?” e o reencontro com os Titãs na turnê que se encerrou há um ano.

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Arnaldo Antunes


Foto: Leo Aversa

Esse álbum traz uma estética diferente não só do seu trabalho anterior, mas de tudo que você já fez na sua carreira. O que te levou por esse caminho?
Venho do Lágrimas do mar, que é um disco muito concentrado, muito intimista, gravado com o Vitor Araújo e que rendeu uma turnê de três anos. Então, estava muito voltado para as canções e já estava com saudade de fazer um trabalho mais pesado, dançante, de banda. Ao mesmo tempo, tenho esse desejo de renovação constante, de fazer coisas que nunca fiz. Foi isso que me levou a fazer um show só de voz e piano com o Vitor. Agora, quis chamar músicos e um produtor que fizessem um novo som em relação aos discos anteriores que já gravei com banda. O Pupillo tem uma coisa muito inventiva, com ideias muito originais e, ao mesmo tempo, com essa liberdade de trabalhar com qualquer tipo de gênero musical. Sou fã do Kiko, dos discos solo dele e do Metá Metá, mas me surpreendeu a maneira como ele vê a música, como ele destila as frases e os timbres a partir das canções. Fiquei feliz pra caramba com a contribuição do Vitor, dando continuidade à nossa parceria, agora de um outro jeito, com sintetizadores além do piano, e em um outro tipo de som. O Betão sempre dá uma segurança muito grande de peso, de suingue. Esse título, Novo mundo, trouxe também uma nova sonoridade, tem um frescor que me entusiasmo muito.

O que representa para você ter a participação do David Byrne em duas faixas?
Sempre tive muita admiração e afinidade (por ele). É uma honra fazer coisas com ele. Desde os Talking Heads e do filme Stop making sense (1984), ele sempre foi uma referência para mim como performance e maneira de cantar. Nós já havíamos estado juntos em algumas situações, mas sempre muito rápido, em shows… Ele já tinha escrito um prefácio para uma antologia de poemas meus que saiu na Espanha (Doble duplo, de 2000). Já tínhamos, então, algum contato, mas nunca tinha feito nada com ele. Aí, fiz o convite e ele foi super-receptivo. Passamos um ano trocando e-mails, gravamos separadamente – ele gravou a voz dele em Nova York, e a gente, aqui. Deu muito certo e aconteceu como imaginava: com muita sintonia e integridade. Foi uma alegria.

 

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Ele também te inspira na maneira de se vestir?
Desde o começo dos anos 80. No Stop making sense, ele usa aquele terno gigante meio desengonçado e aquilo foi uma referência para mim em termos de performance, linguagem e moda. Sempre acompanhei o trabalho dele. O mais recente, American utopia (2020), é uma maravilha: o jeito como a banda se veste e atua no palco, todos soltos naquela coreografia. Tudo isso é muito marcante para mim.

E em relação às outras participações?
Tem a Marisa, minha parceira de muitos anos, presente também nesse trabalho com uma música nova nossa. As nossas vozes soando juntas já têm uma identidade e é uma felicidade sempre ter ela por perto. As outras participações são inéditas, de artistas que tenho admirado o trabalho, o Vandal e a Ana Frango Elétrico. O charme da voz da Ana, naquela música (“Pra não falar mal”), em que o final de um verso atravessa o começo do outro… O dueto funcionou, foi um encanto. E o Vandal entrou de um jeito superadequado em “Novo mundo”. Eu me identifico com aquele jeito de cantar. No começo dos Titãs, eu cantava parecido. Ele tem uma visceralidade na voz muito impressionante.

Qual é a história por trás dessa parceria com o Erasmo Carlos?
É uma parceria póstuma, uma letra dele que o Léo Esteves, filho dele, me passou através do (diretor artístico) Marcus Preto, que produziu junto com o Pupillo o último disco do Erasmo (Erasmo Esteves, de 2024). “Viu, mãe?” é uma letra dele que musiquei. Eu me encantei com a letra, a coisa amorosa dele com a figura da mãe, que é um tema recorrente em várias canções dele. É um jeito oposto às parcerias que fiz anteriormente com o Erasmo, com ele ainda em vida. Era sempre ele me dando melodias e eu pondo letra. É uma canção muito importante no disco, que faz parte do lado solar do repertório. O álbum tem um lado mais crítico, mais ácido, com as canções “Novo mundo”, “Tire o seu passado da frente”, “Tanta pressa pra quê?”… “Viu, mãe?” é importante para o lado mais afetivo do disco.

 

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Você começa o disco com a faixa “Novo mundo”, que fala de crise climática e hiperconectividade, e acaba com “Tanta pressa pra quê?”, que também reflete sobre um tema contemporâneo. Tem um recado por trás dessa escolha, você começar e terminar com assuntos que perturbam a sociedade hoje em dia?
É proposital. São músicas que têm uma temática muito parecida, a maneira como, nos últimos anos, os meios digitais invadiram e transformaram as nossas relações com as outras pessoas. As duas têm um lado muito crítico, um desejo de reagir a isso. A gente tinha uma expectativa muito positiva quando começou a internet, de que a comunicação instantânea ia trazer uma maior tolerância, uma maior convivência com a diversidade e as diferenças… E vemos essa coisa dos algoritmos incentivando a violência, o ódio, a formação de guetos… Tudo isso se acirrou e a gente assiste a um mundo mais intolerante. Isso se junta, claro, com a ascensão da extrema-direita no mundo, com uma economia global muito predatória e a crise ambiental sem precedentes. Então, é um cenário meio distópico que está nos invadindo diariamente nas telinhas. Isso vem crescendo, alterando a relação entre as pessoas, aumentando o número de problemas mentais, como depressão. Acho que a gente precisa encontrar soluções de como resistir, de como reagir, e não se entregar ao desânimo – que é uma coisa que a música (“Novo mundo”) fala: “A pior derrota é o desânimo”.

Me chamou a atenção que bem no meio do disco com 12 músicas, nas faixas 6 e 7, “Acordarei” e “Pra brincar”, você usa versos que trazem o verbo “acordar”. Acha que existe algo que está dormindo e precisa despertar nesse mundo contemporâneo?
Adorei essa sua percepção, não tinha reparado que as duas têm esse uso do verbo “acordar”. Tem tudo a ver. É uma percepção de algo que talvez eu tenha feito, inconscientemente. E é isso mesmo: precisamos acordar de um transe em que a tecnologia digital nos coloca, dentro das redes sociais e dos meios de comunicação, acordar através do afeto. São duas músicas muito amorosas. “Pra brincar”, especificamente, é uma faixa que tem uma maneira meio infantil de dizer a respeito de uma relação amorosa adulta. E são músicas quase de ninar, né? Então, tem um sentido, ao mesmo tempo, oposto. Acordar, hoje em dia, é sair um pouco dessa velocidade de tanto excesso de assunto e ter um tempo de contemplação, de serenidade, de ócio criativo, um tempo contrário a essa velocidade avassaladora de informações que a gente está acostumado a viver nas telas.

“Tenho esse desejo de renovação constante, de fazer coisas que nunca fiz”

Está fazendo um ano que terminou a sua turnê com os Titãs e, recentemente, veio a notícia de que Tony Belotto está tratando um tumor no pâncreas. Como você lida com essas duas experiências relacionadas à banda?
A experiência do reencontro, da turnê, foi uma maravilha. Estar junto com eles de novo no palco, fazendo um show inteiro, como era a formação da época que estive na banda (Arnaldo deixou o grupo em 1992)… Foi um encontro de amigos, a gente matando a saudade entre nós e do público também. Ao mesmo tempo, percebendo como é atual aquilo que a gente fez naquela época – porque tinha várias gerações no público: pais com os filhos, pessoas que assistiram a gente naquela época e outras que nunca tinham assistido aquela formação ao vivo. Foi muito gratificante para todos nós. Sobre o Belotto, é claro que fiquei muito sentido e tocado. Estamos na torcida para que dê tudo certo com a cirurgia e que ele logo esteja recuperado, fazendo shows. A gente vai chegando numa idade que essas coisas começam a aparecer. O Branco teve um problema bem grave de saúde também (em 2018, foi diagnosticado com câncer na laringe e nas amígdalas), mas conseguiu superar e estar junto com a gente na turnê. Todos nós passamos por momentos delicados, mas somos resistentes. Os Titãs são fortes.

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