Crise climática é uma crise humana

As consequências das mudanças climáticas para o meio ambiente são diversas e visíveis: ondas de calor, tempestades, enchentes e secas cada vez mais severas, e elevações da temperatura dos oceanos e dos níveis da água do mar, com todo impacto que isso também causa. Tal cenário se reflete sobre a segurança e a qualidade de vida da humanidade, tendo um efeito ainda mais devastador para os refugiados climáticos – um grupo crescente de pessoas que viram suas comunidades inteiras serem destruídas, perdendo pessoas, casas e seus meios de subsistência devido a desertificações, inundações e outros eventos climáticos extremos ou que vivem sob essas ameaças. Só na última década, segundo relatório da ACNUR, Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados, foram 220 milhões de deslocamentos.

O agravante, como mostra o documento, é que a maior parte do refugiados climáticos é de países pobres e pouco preparados para adaptações às alterações no clima. É o caso de Sudão, Síria, Haiti, República Democrática do Congo, Líbano, Mianmar, Etiópia, Iêmen e Somália, onde 90 milhões de pessoas estão expostas a perigos relacionados ao clima. Ou seja, os impactos afetam desproporcionalmente as populações mais vulneráveis do mundo — incluindo refugiados, pessoas deslocadas por conflitos e as comunidades que os acolhem. Muitas vezes carecendo de recursos críticos, como habitação estável, segurança financeira, apoio institucional ou acesso a serviços essenciais, as pessoas deslocadas também lutam para se preparar, se adaptar ou se recuperar dos desastres. “A crise climática é uma crise humana. Como você a vivencia depende de quem você é e onde vive”, afirma o documento.

De acordo com Miguel Pachioni, oficial de Comunicação do ACNUR no Brasil, a entidade declarou 26 novas emergências no ano passado. Dentre elas, um recorde de nove eram devido a eventos climáticos extremos, notavelmente chuvas pesadas e inundações severas – cerca de 1 em cada 3. “Desastres relacionados ao clima impactaram áreas que já hospedavam refugiados e pessoas deslocadas pela guerra, piorando surtos de doenças e destruindo meios de subsistência e infraestrutura crítica”, lamenta.

Resiliência e sustentabilidade; mitigação e adaptação, as faces da solução

Miguel Pachion (Foto: Divulgação / ACNUR Brasil)

Para Pachioni, o deslocamento forçado de pessoas ocasionado pelas mudanças climáticas e pelos desastres naturais exige soluções que atuem, tanto na mitigação dos impactos ambientais, como na adaptação, resposta e reconstrução das ações a serem adotadas pelos governos. “Para tanto, a disponibilidade de recursos financeiros, o compartilhamento de conhecimentos já existentes e a inclusão das populações deslocadas nos planos de resposta são cruciais para assegurar que as parcelas em situação de maior vulnerabilidade estejam contempladas nas decisões a serem tomadas”.

Em Bangladesh, a construção de abrigos elevados ajudou comunidades costeiras a resistir a ciclones e inundações. “Isso é um exemplo de que investir em infraestrutura resiliente e sustentável, como sistemas de drenagem e reflorestamento, tende a reduzir o impacto de desastres climáticos. Paralelamente, em atenção às populações mais severamente impactadas, projetos que promovam a segurança alimentar e a geração de renda ajudam a evitar deslocamentos forçados. No Sahel, iniciativas de agricultura sustentável buscam conter a desertificação e manter as populações em suas terras”. 

Leia também: Iniciativa Verde Saudita usa árvores para combater a desertificação

No Brasil, pontua Pachioni, uma boa prática foi realizada pelo governo do estado do Rio Grande do Sul, que iniciou em 2024 a elaboração do Planejamento de Contingência para Desastres Socioambientais do estado, com apoio do Ministério Público e do ACNUR, reforçando a necessidade de haver protocolos que orientem as respostas do governo em face de novos episódios de desastres, que tendem a ser mais frequentes e intensos em diversas partes do território brasileiro. “Tais soluções precisam engajar as populações de maior potencial de impacto, estar integradas a uma cooperação internacional mais efetiva, garantindo financiamento e apoio técnico, além de se atentar às recomendações do ACNUR de que os planos devem considerar em sua estruturação a participação e opiniões das pessoas mais afetadas e em situação de maior fragilidade, como seguramente se trata do caso das refugiadas”, acrescenta. 

Refugiados climáticos, conceito, resistência e resiliência

Foto: Benjamin Mast / ACNUR

O termo “refugiados” é atribuído pelo direito internacional a pessoas que deixam seu país de origem por “fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas”, em situações nas quais “não possa ou não queira regressar”. São tipos particulares de migrantes, que têm proteções especiais, dada à situação de ameaça que vivem.

No Brasil, o refúgio vale também para “graves e generalizadas violações de direitos humanos”. O tema é regulado por uma convenção de 1951, acompanhada pelo Brasil via lei n. 9.474/1997, e pela Declaração de Cartagena, voltada para países latino-americanos.

No entanto, a definição de refugiado não se aplica às pessoas forçadas a se deslocar por conta de eventos relacionados ao clima, embora exista uma definição do termo no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente: “[Refugiadas ambientais são] as pessoas que foram obrigadas a  abandonar temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devido ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas) perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal maneira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo”.

Mesmo diante de números e situações alarmantes, há, portanto, uma grande resistência internacional em reconhecer oficialmente os refugiados climáticos. Situação que começou a mudar em 2020. Em resposta ao pedido de refúgio de um habitante de Kiribati – país da Oceania formado por ilhas, ameaçado de ser engolido pelas águas do mar em consequência das mudanças climáticas -, o Comitê de Direitos Humanos da ONU determinou que países não podem deportar pessoas cuja vida esteja imediatamente ameaçada por eventos climáticos. A decisão favorável para que ele pudesse viver na Nova Zelândia abriu caminho para que outros busquem proteção internacional com base na crise climática.

“Ainda que o direito internacional não reconheça diretamente como refugiadas as pessoas deslocadas por fatores climáticos, dificultando, assim, sua proteção e acesso pleno aos seus direitos, países como a Nova Zelândia e o Canadá já discutem vistos humanitários para populações deslocadas por eventos climáticos extremos”, comemora Pachioni.

Refugiados climáticos pelo mundo

Afeganistão

Foto: Umair Utmaan / Shutterstock

Há mais de quatro décadas, o Afeganistão enfrenta uma crise humanitária em decorrência de guerras e conflitos armados, gerando um dos maiores êxodos humanos de refugiados do mundo. Enquanto as instabilidades política e econômica são fatores centrais desta emergência, pouco se fala sobre outra causa que intensifica a complexidade e dificuldade de resolução dos conflitos na região: as mudanças climáticas.

Os períodos cada vez mais intensos e extensos de seca, somados aos invernos rigorosos, retroalimentam conflitos e multiplicam as ameaças entre uma população que depende majoritariamente da agricultura para sobreviver. 

Com recursos naturais cada vez mais escassos, as disputas territoriais se intensificam porque as pessoas não têm acesso à água e à comida, cenário que coloca o Afeganistão praticamente no topo do ranking dos países que mais sofrem com a fome no mundo: são 18,9 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar no país. 

E com paradoxo intrigante: o Afeganistão é um dos países com menores índices de emissão de CO2 e, proporcionalmente, um dos mais afetados pelas mudanças climáticas globais.

Países africanos

Foto: Richard Juilliart / Shutterstock

Secas extremas também agravam a emergência humanitária na República Democrática do Congo, que lidera o ranking da fome global e enfrenta um dos cenários mais desafiadores de deslocamento forçado no mundo. São mais de seis milhões de congoleses refugiados climáticos e deslocados internos em decorrência da violência e conflitos. 

Todo o nordeste da África também está passando por uma seca catastrófica. Milhões de agricultores na Somália, Etiópia e Quênia dependem de seu gado e plantações para sobreviver. Sem água suficiente, os animais e as colheitas estão morrendo. Somente na Somália, 90% do país está severamente afetado.

Já na outra ponta da extremidade climática, as inundações têm gerado centenas de mortes e milhões de deslocamentos forçados nas regiões oeste e central do continente africano. Entre Nigéria, Chade, Níger, Burkina Faso, Mali e Camarões, são mais 3,4 milhões de pessoas afetadas.

No Sudão do Sul, as inundações dos últimos anos causaram deslocamento em massa e crise humanitária, deixando cerca de dois terços do país sob água. Mais de um milhão de pessoas foram afetadas. A ONU estima que mais de 75% da população do Sudão do Sul precisa de ajuda alimentar.

Américas

Foto: Douglas Pfeiffer / Shutterstock

Relatório da ONG norueguesa IDMC (Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos) revela que o Brasil lidera deslocamentos internos por desastres naturais nas Américas. Foram registrados, no país, 745 mil deslocamentos forçados em 2023 pelos efeitos do clima. Isso representa mais de um terço do total na região.

O mais recente desastre climático ocorreu no Rio Grande do Sul, deixando um rastro de destruição, causando inundações e perdas humanas e materiais, com 2,3 milhões de refugiados climáticos.

Mesmo assim, o país não tem até agora uma política nacional para deslocados climáticos. Na prática, essas pessoas ficam vulnerabilizadas, sem acesso a saúde, educação, trabalho e programas de auxílio do governo.

O post Crise climática é uma crise humana apareceu primeiro em Habitability.

Adicionar aos favoritos o Link permanente.