Niomar Bittencourt: a mulher que enfrentou o Brasil

Niomar Moniz Sodré Bittencourt foi um ícone da resistência contra a ditadura, transitou pelos bastidores do poder no País e fez parte do jetset artístico internacional dos anos 40 aos 80.

Embora tenha sido uma figura ímpar para a arte moderna e a democracia, Niomar foi esquecida.

Agora, um leilão da Sotheby’s no dia 10 de abril e o lançamento de sua biografia nos próximos meses vão jogar luz sobre sua história e legado.

Niomar nasceu em Salvador em 1916 mas cresceu no Rio de Janeiro, em uma família politicamente influente. Seu pai, Antônio Moniz Sodré, um homem culto e progressista, foi um deputado e senador pela Bahia. Com a morte precoce de sua mãe, Niomar se aproximou das atividades políticas do pai e participou ativamente da luta pelo voto feminino, conquistado em 1932.

Com apenas 15 anos, começou a escrever em uma seção feminina do Correio da Manhã, o jornal fundado por Edmundo Bittencourt, amigo de seu pai.

A jovem se casou com um primo aos 16 anos, sem a aprovação paterna, como forma de ter mais independência. Logo teve um filho, mas a vida doméstica não a satisfazia.

Ávida leitora, mantinha o hábito de escrever e resolveu voltar a trabalhar no Correio da Manhã, onde passou a conviver diariamente com Paulo Bittencourt, um jornalista e herdeiro do jornal.

Para escândalo da sociedade carioca, os dois casados se “desquitaram”, mas não como podiam se casar no Brasil – a Lei do Divórcio só entraria em vigor em 1977 – foram celebrar a união na França.

O casamento foi a junção da oligarquia baiana, Moniz Sodré, com os Bittencourt, uma família cosmopolita e influente. Paulo estudou em Cambridge, acompanhou Epitácio Pessoa na negociação do Tratado de Versalhes, e tinha um expressivo network  internacional para a época.

Niomar encontrou nele um parceiro que compartilhava de seu interesse pela literatura, a arte e sua visão de progresso e modernidade. Juntos, queriam transformar o Rio de Janeiro na capital da arte moderna. Enquanto Paulo cuidava do jornal, Niomar se ocupava das artes.

Seu encontro com a escultora Maria Martins, anos mais velha e também desquitada, foi um divisor de águas em sua vida.

“Coube a Maria o papel de principal anfitriã no mundo das artes durante o período da Segunda Guerra. No apartamento nova-iorquino de Peggy Guggenheim, Niomar seria apresentada a Duchamp, André Breton, Yves Tanguy, Marc Chagall e Piet Mondrian, artistas que no futuro iriam pertencer ao acervo do MAM e seu pessoal,” disse Ricardo Cota, um jornalista e escritor que em breve lançará o livro A Mulher que Enfrentou o Brasil: A arte e a coragem de Niomar Moniz Sodré Bittencourt.

“Em Paris, a cidade que adotou como segunda residência, viveu entre os maiores intelectuais da época.  Recebeu lá seu estimado amigo, o presidente Juscelino Kubitschek com direito aos Dragões da Independência na porta do prédio.”

Niomar sonhava em criar um museu no Brasil semelhante ao MoMA de Nova York. Nelson Rockefeller, amigo de Paulo, foi o primeiro a sugerir que ela levasse o projeto adiante. Ele dizia que não existia ninguém no Brasil com as credenciais dela: amor à arte, conhecimento do meio, influência social, e um jornal importante como o Correio Da Manhã.

Em 1958, o sonho se concretizou: o Museu de Arte Moderna abriu as portas com a presença de amigos de Niomar como Carlos Drummond de Andrade, Maria Martins e Anita Malfatti. Guimarães Rosa resumiu tudo com um de seus memoráveis neologismos: “Museu de Arte Moderna, não. NioMAMrium.”

O museu não apenas abrigava obras de arte como passou a ser palco de debates sobre as questões sociais e manifestações culturais, principalmente depois de 68.

Presidente de honra do MAM, Niomar usou seus contatos e olhar apurado para comprar obras de talentos ainda desconhecidos para o museu e, junto com Paulo, formou uma coleção de arte moderna que misturava obras brasileiras e internacionais, como de Brancusi, Pollock, Picasso — muitas vezes compradas diretamente dos artistas.

Após a morte de Paulo em 1963, Niomar assumiu a liderança do Correio da Manhã. Durante a ditadura, transformou o jornal em uma voz de resistência, criticando abertamente o regime. 

Após um atentado a bomba em uma das agências de classificados do jornal, Niomar respondeu com um editorial forte condenando o terrorismo. Em 1969, ficou presa por 72 dias, o que gerou comoção internacional. Ouviu de um general que se comportava “como um homem.”

Libertada, manteve a luta pela liberdade da imprensa e a defesa dos artistas, até que foi forçada ao exílio em Paris. Não fez concessões ao governo, o que afastou anunciantes e levou o jornal a fechar as portas em 1974.

Mas o verdadeiro baque de sua vida veio na sequência: dois incêndios que destruíram as coleções a que tanto se dedicara a construir.

Primeiro o trágico incêndio do MAM, em 77, e depois, em 85, o de sua coleção particular no apartamento do Flamengo. A perda das obras de Mondrian, Picasso, Chagall e Volpi a deixaram devastada e deprimida.

Preocupada com a amiga, Eunice Paiva organizou um almoço no MAM em sua homenagem. As mais importantes personalidades políticas da época – como o presidente Sarney e o governador Brizola, inimigos declarados – sentaram-se juntos ao lado da homenageada e diversos intelectuais e artistas. Niomar discursou e terminou com a frase emblemática: a liberdade era seu “dogma de vida.”

As obras que serão leiloadas no dia 10 foram preservadas porque estavam todas na sua residência de Paris, com exceção de uma. A única obra que sobrou do incêndio do seu apartamento carioca foi uma escultura em bronze de Giacometti, intitulada Woman Standing.

“Essa obra é emblemática da história de Niomar: representa a força e fragilidade da mulher,” Katia Mindlin, a presidente da Sotheby’s no Brasil, disse ao Brazil Journal.

Niomar foi uma mulher de vanguarda, com feitos extraordinários em uma época em que a mulher não tinha voz nem direitos. Como acontece com sua amiga Eunice, seu legado “ainda está aqui”.

Assista aqui um vídeo da Sotheby’s sobre Niomar.

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