O guardião infiel: o dólar em xeque

Na década de 1990, diante do aumento da criminalidade urbana, os Estados Unidos adotaram uma política de tolerância zero inspirada na lógica do “Three Strikes and You’re Out” — expressão do beisebol que, em termos penais, significava: errou três vezes, está fora. A regra era simples e dura: à terceira reincidência, o infrator perdia a liberdade. Curiosamente, essa mesma lógica pode ser aplicada hoje ao próprio comportamento dos Estados Unidos como guardião do dólar. Ao reincidir em decisões que comprometem a confiança global na sua moeda, o país ameaça a longevidade daquilo que sempre foi seu maior trunfo geopolítico: a centralidade do dólar.

Certa vez, em sala de aula na School of Advanced International Studies, da Johns Hopkins University, em Washington, DC,  quando aluno, perguntei a um professor de economia internacional como os Estados Unidos conseguiam sustentar tamanha dívida pública. Ele, sem titubear, tirou do bolso uma nota de 20 dólares e disse: “Enquanto o mundo confiar no emissor, isso continuará valendo.” Essa resposta simples carregava uma verdade essencial: o valor de uma moeda global repousa sobre confiança, não sobre papel. E é exatamente essa confiança que vem sendo corroída, pouco a pouco, por decisões tomadas ao longo das últimas décadas.

A primeira grande ruptura ocorreu em 1971, quando Richard Nixon abandonou o padrão-ouro e rompeu unilateralmente com os Acordos de Bretton Woods. Foi um movimento pragmático, sim — mas também a primeira demonstração clara de que os Estados Unidos estavam dispostos a mudar as regras do jogo conforme seus próprios interesses. A semente da desconfiança foi plantada.

A segunda “infração” veio em 2008, com a crise financeira. O governo Bush, ao implementar o quantitative easing, inundou os mercados com trilhões de dólares recém-criados. Salvou bancos, mas desvalorizou a moeda e prejudicou economias que mantinham reservas em dólar. O mundo suportou, mas não esqueceu.

A terceira e mais recente falta veio sob o governo Trump. Com o discurso de reindustrialização dos EUA, medidas protecionistas foram tomadas de forma abrupta e unilateral. Tarifas foram impostas, acordos rompidos, o multilateralismo abandonado. Embora o objetivo de fortalecer a indústria americana fosse legítimo, os meios escolhidos corroeram ainda mais a previsibilidade do dólar como moeda global. Como declarou recentemente o atual Secretário de Estado, Marco Rubio, os Estados Unidos não podem ser apenas uma nação de serviços. Mas a reconstrução da base industrial não pode ocorrer às custas da estabilidade do sistema monetário internacional.

Se pensarmos em estabilidade — valor fundamental para qualquer moeda de referência —, o governo norte-americano tem deixado muito a desejar. A condução econômica, tanto no plano doméstico quanto internacional, revela um padrão preocupante de imprevisibilidade e priorização do curto prazo. Os Estados Unidos estão agindo como um guardião infiel da própria moeda que os projeta globalmente.

O mundo começa a reagir. A Rússia e a China avançam na desdolarização. Bancos centrais diversificam suas reservas. Moedas digitais e alternativas tecnológicas surgem com força. O dólar não desaparecerá amanhã — mas seu papel como pilar incontestável da ordem econômica global já está em xeque.

A confiança é lenta para se construir, rápida para se perder e quase impossível de restaurar. E, se os Estados Unidos seguirem reincidindo, talvez descubram — tarde demais — que na economia global também vale a regra do “Three Strikes and You’re Out”.

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