Internet tem dono? Conheça a organização “invisível” que controla toda a internet

Toda vez que você digita um endereço na barra do navegador, uma complexa infraestrutura tecnológica trabalha nos bastidores para direcionar você ao site desejado. Por trás dessa mágica aparentemente simples, existe uma organização pouco conhecida pelo público geral, mas absolutamente fundamental para o funcionamento da internet como conhecemos hoje.

Imagine a internet como uma imensa cidade global, com bilhões de endereços únicos. Sem uma organização central para coordenar esses endereços, seria impossível garantir que cada site tivesse sua localização exclusiva e que todos pudessem ser encontrados. É aí que entra a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers), uma entidade que, longe dos holofotes, estabelece as regras do jogo digital e garante que a internet funcione de maneira organizada e acessível.

Apesar de seu papel fundamental, poucos usuários sabem exatamente o que faz a ICANN ou como suas decisões afetam diretamente a experiência online de cada pessoa. Afinal, quem realmente “controla” a internet? Existe alguma organização com o poder de definir como a rede mundial de computadores opera? E quais são as implicações desse controle para a liberdade e o futuro da web?

Neste artigo, vamos explorar os bastidores da infraestrutura da internet e revelar como a ICANN atua como uma das organizações mais importantes – embora quase invisível – do mundo digital. Continue lendo para entender quem realmente determina as regras do jogo na internet global.

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A origem da ICANN: quando a internet precisou de ordem

LACNIC

A internet que conhecemos hoje nem sempre foi tão organizada. Nos primórdios da rede mundial, no final dos anos 1960 e início dos 1970, a internet era basicamente um projeto militar e acadêmico com poucas dezenas de computadores conectados. À medida que a rede cresceu, tornou-se necessário criar um sistema para organizar os endereços e nomes dos sites.

Até 1998, a tarefa de coordenar esses identificadores únicos era realizada pela Internet Assigned Numbers Authority (IANA), sob a direção de Jon Postel, um dos pioneiros da internet. O governo dos Estados Unidos, que financiava a IANA através da National Science Foundation, mantinha controle direto sobre aspectos críticos da infraestrutura da internet. Com a expansão e comercialização da web nos anos 1990, ficou claro que era necessário um modelo mais internacional e independente.

Foi nesse contexto que a ICANN foi fundada em 18 de setembro de 1998, como uma organização sem fins lucrativos sediada na Califórnia, mas com uma missão global. Sua criação representou uma tentativa de transição do controle da internet das mãos do governo americano para uma entidade multinacional com participação de diversos setores da sociedade, incluindo empresas, acadêmicos, usuários e governos.

A transição completa de supervisão das funções da IANA do governo dos EUA para a ICANN só foi concluída em 2016, quando o contrato entre o Departamento de Comércio americano e a ICANN expirou e não foi renovado, marcando um momento histórico para a governança da internet.

Como funciona o sistema de domínios que a ICANN gerencia

ICANN

Para entender a importância da ICANN, é preciso compreender como funciona o sistema que ela coordena. Quando você digita um endereço como “www.hardware.com.br” no navegador, o que acontece nos bastidores é um processo fascinante.

O Sistema de Nomes de Domínio (DNS) funciona como uma grande agenda telefônica da internet. Cada site possui um endereço IP numérico (como 192.168.1.1) que é difícil para humanos memorizarem, por isso usamos nomes de domínio que são mais fáceis de lembrar. O DNS traduz esses nomes em endereços IP para que os computadores possam se comunicar.

A estrutura do DNS é hierárquica, começando pelo que chamamos de “zona raiz”. A ICANN supervisiona essa zona raiz, que é a base de todo o sistema. A partir dela, ramificam-se os domínios de topo (TLDs), como:

  • Domínios genéricos (gTLDs): .com, .org, .net
  • Domínios de código de país (ccTLDs): .br, .us, .jp
  • Novos domínios genéricos: .app, .blog, .shop

Cada domínio de topo é gerenciado por uma organização registradora que segue as políticas estabelecidas pela ICANN. Por exemplo, o domínio .br é administrado pelo Registro.br, vinculado ao Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

A alocação de endereços IP, outro recurso finito da internet, também é coordenada pela ICANN através dos Registros Regionais da Internet (RIRs), como o LACNIC na América Latina e Caribe.

As responsabilidades da ICANN na infraestrutura global da internet

A ICANN desempenha diversas funções críticas que vão muito além de apenas coordenar nomes de domínio. Entre suas principais responsabilidades estão:

Coordenação técnica do DNS

A principal função da ICANN é garantir que o DNS funcione de forma estável e segura. Isso inclui a supervisão dos 13 conjuntos de servidores-raiz do DNS espalhados pelo mundo, que são a base de todo o sistema de resolução de nomes na internet.

Definição de políticas para nomes de domínio

A ICANN estabelece as regras para o registro e uso de nomes de domínio, incluindo:

  • Políticas para resolução de disputas de nomes (UDRP)
  • Processos para introdução de novos domínios de topo
  • Padrões para registro de nomes de domínio internacionalizados (IDNs), que permitem nomes de domínio em diferentes alfabetos e idiomas

Alocação de endereços IP

Com o crescimento da internet, os endereços IP se tornaram um recurso cada vez mais escasso, especialmente no formato IPv4. A ICANN coordena a distribuição global de endereços IP em colaboração com os cinco Registros Regionais da Internet (RIRs):

  • AFRINIC (África)
  • APNIC (Ásia-Pacífico)
  • ARIN (América do Norte)
  • LACNIC (América Latina e Caribe)
  • RIPE NCC (Europa, Oriente Médio e partes da Ásia Central)

Coordenação de parâmetros de protocolo

A ICANN, através das funções da IANA, mantém registros de parâmetros de protocolos de internet. Esses parâmetros são valores técnicos usados em vários protocolos da internet definidos pela Internet Engineering Task Force (IETF).

Como a ICANN está estruturada: o modelo multissetorial

ICANN

A ICANN opera sob um modelo de governança multissetorial, o que significa que diferentes partes interessadas participam do processo de tomada de decisão. Esta estrutura complexa inclui:

Conselho de Diretores

O órgão máximo da ICANN é o Conselho de Diretores, composto por 21 membros:

  • 15 com direito a voto
  • 6 sem direito a voto (representantes de liaison)

O conselho tem autoridade máxima para aprovar ou rejeitar recomendações de políticas desenvolvidas pelas organizações de apoio e comitês consultivos.

Organizações de Apoio

Três organizações de apoio desenvolvem políticas em áreas específicas:

  1. Address Supporting Organization (ASO) – Lida com políticas relacionadas a endereços IP
  2. Country Code Names Supporting Organization (ccNSO) – Desenvolve políticas para domínios de código de país (como .br)
  3. Generic Names Supporting Organization (GNSO) – Trata de políticas para domínios genéricos (como .com)

Comitês Consultivos

Quatro comitês consultivos fornecem recomendações ao Conselho:

  1. Governmental Advisory Committee (GAC) – Representa governos e organizações intergovernamentais
  2. At-Large Advisory Committee (ALAC) – Representa os interesses dos usuários individuais da internet
  3. Root Server System Advisory Committee (RSSAC) – Aconselha sobre operações dos servidores-raiz
  4. Security and Stability Advisory Committee (SSAC) – Foca em questões de segurança e estabilidade do DNS

Esta estrutura complexa visa garantir que todas as vozes sejam ouvidas no processo de formulação de políticas, desde empresas de tecnologia até governos e usuários comuns.

A ICANN no Brasil: como funciona a governança da internet brasileira

O Brasil tem um modelo de governança da internet considerado referência mundial, com o Comitê Gestor da Internet (CGI.br) como peça central. A relação entre a ICANN e as instituições brasileiras exemplifica como a governança da internet pode funcionar de forma colaborativa e multissetorial.

Comitê Gestor da Internet (CGI.br)

Criado em 1995, o CGI.br é responsável por coordenar e integrar todas as iniciativas de serviços de internet no Brasil. O comitê é composto por membros do governo, setor empresarial, comunidade técnica e sociedade civil. O CGI.br estabelece diretrizes estratégicas para o uso e desenvolvimento da internet no país, além de administrar o domínio .br.

Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br)

O NIC.br é o braço executivo do CGI.br, responsável por implementar suas decisões e projetos. Entre suas principais atribuições estão:

  • Gerenciar o Registro.br, que registra e mantém os domínios .br
  • Alocar endereços IP no Brasil
  • Operar o IX.br (Internet Exchange do Brasil), pontos de troca de tráfego que melhoram a eficiência da rede brasileira
  • Produzir estatísticas e indicadores sobre o uso da internet no país através do CETIC.br

Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel)

A Anatel regula o setor de telecomunicações no Brasil, supervisionando as operadoras que fornecem a infraestrutura física para a internet. Enquanto a ICANN e o CGI.br cuidam da camada lógica da internet (domínios, protocolos), a Anatel regula a camada física (fibra óptica, espectro radioelétrico).

Daniel Fink, diretor de relacionamento com stakeholders da ICANN no Brasil, destaca que “o Brasil é uma referência global em governança da internet” através do trabalho do CGI.br. O modelo brasileiro de governança multissetorial é frequentemente citado como exemplo em fóruns internacionais.

Os desafios contemporâneos da ICANN na governança global

Apesar de sua importância fundamental, a ICANN enfrenta diversos desafios em um cenário digital em constante transformação:

Neutralidade e geopolítica

Um dos maiores desafios da ICANN é manter sua neutralidade em meio a tensões geopolíticas. Por ser uma organização sediada nos EUA, a ICANN frequentemente enfrenta críticas quanto à sua independência, especialmente de países como China e Rússia, que defendem um modelo de governança da internet mais centrado na Organização das Nações Unidas (ONU).

Fragmentação da internet

Existe uma preocupação crescente com o risco de “fragmentação” da internet, onde diferentes regiões poderiam desenvolver sistemas incompatíveis entre si. A China, por exemplo, já opera o que alguns chamam de “Grande Firewall”, um sistema que filtra e controla o acesso à internet no país. Se mais países criarem sistemas isolados, a internet global unificada que conhecemos poderia se fragmentar.

Cibersegurança

Com o aumento de ataques cibernéticos, a segurança do DNS tornou-se uma preocupação central. A ICANN tem investido em tecnologias como o DNSSEC (DNS Security Extensions) para proteger o sistema contra vulnerabilidades como o pharming e o DNS cache poisoning.

Privacidade e proteção de dados

Regulamentos como o GDPR europeu impactaram diretamente os serviços WHOIS da ICANN, que tradicionalmente forneciam informações sobre os registrantes de domínios. A ICANN tem trabalhado em um novo sistema que equilibre a necessidade de transparência com os direitos de privacidade.

Novas tecnologias

O surgimento de tecnologias como blockchain, sistemas descentralizados e nomes de domínio alternativos representa tanto oportunidades quanto desafios para o modelo de governança centralizada do DNS. A ICANN precisa acompanhar essas inovações para manter sua relevância em um ecossistema digital em constante evolução.

O futuro da ICANN e da governança da internet

ICANN

Olhando para o futuro, a ICANN enfrenta o desafio de adaptar seu modelo de governança para atender às necessidades de uma internet cada vez mais complexa e essencial para a sociedade global.

Ampliação da participação global

Um dos principais objetivos da ICANN é aumentar a participação de regiões sub-representadas como África, América Latina e partes da Ásia. A diversidade geográfica é essencial para garantir que as políticas da internet reflitam as necessidades de todas as comunidades globais.

Transição para IPv6

Com o esgotamento dos endereços IPv4, a transição para o protocolo IPv6 (que oferece um número praticamente ilimitado de endereços) torna-se cada vez mais urgente. A ICANN tem um papel importante em coordenar essa transição em escala global.

Descentralização e novas tecnologias

Tecnologias descentralizadas como blockchain e Web3 estão desafiando o modelo tradicional de governança da internet. A ICANN precisará encontrar formas de integrar ou coexistir com essas novas arquiteturas que propõem alternativas ao DNS centralizado.

Inteligência artificial e automação

A ICANN também está explorando como a inteligência artificial pode melhorar a segurança e a eficiência do DNS, ao mesmo tempo em que enfrenta questões éticas e práticas sobre o uso dessas tecnologias na infraestrutura crítica da internet.

O futuro da internet dependerá em grande parte da capacidade da ICANN de equilibrar interesses diversos, adaptar-se às novas tecnologias e manter a abertura e universalidade da rede, garantindo que a internet continue sendo um recurso global compartilhado e acessível a todos.

Por que a governança da internet importa para todos nós

A internet se transformou de uma rede acadêmica em uma infraestrutura essencial que conecta bilhões de pessoas e sustenta a economia global. O trabalho da ICANN, embora técnico e muitas vezes invisível para o usuário comum, é fundamental para manter essa infraestrutura funcionando.

A governança da internet não é apenas uma questão técnica, mas também política e social. As decisões tomadas pela ICANN e outras organizações de governança da internet afetam diretamente nosso acesso à informação, privacidade, liberdade de expressão e oportunidades econômicas.

O modelo multissetorial da ICANN, com suas imperfeições, representa uma tentativa única de governança global colaborativa em um mundo digital sem fronteiras. No Brasil, o trabalho do CGI.br e do NIC.br demonstra como esse modelo pode ser adaptado às realidades locais, promovendo uma internet mais democrática e inclusiva.

Você já tinha conhecimento sobre como a internet é governada? Como você acha que o modelo de governança da internet deve evoluir para enfrentar os desafios do futuro digital?

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