Protect the dolls e a moda como aliada

Há grandes chances de você ter visto alguém usando uma camiseta com a estampa “Protect the dolls” em suas redes sociais. Dolls é o apelido usado desde os anos 1980 para mulheres transexuais na cultura ballroom. A peça é uma criação de Connor Ives, estilista estadunidense radicado em Londres. Ela foi desfilada pelo próprio ao fim de sua apresentação de inverno 2025 na London Fashion Week. 

Protect the dolls

Pedro Pascal usa a camiseta Protect the dolls.
Foto: Getty Images

Nas últimas semanas, o cantor Troye Sivan fez uma participação especial no show de Charli XCX, no festival Coachella, usando a blusa. Tilda Swinton e Haider Ackermann também posaram com as suas, em ocasiões distintas. Quem chamou mais atenção, no entanto, foi Pedro Pascal. Ele vestiu o item em sua festa de aniversário, no início de abril, e na estreia britânica do filme Thunderbolts, na última terça-feira (22.04). O ator se tornou uma voz do ativismo da causa trans desde que sua irmã, Lux Pascal, se revelou uma mulher trans em fevereiro de 2021. 

Moda pode ser muitas coisas. Pode inclusive ser política, uma resposta ao que acontece no mundo e plataforma de ajuda e visibilidade para minorias e grupos historicamente marginalizados. O assunto é complexo e delicado. Envolve a comercialização de produtos se valendo de problemas e realidades alheias bastante complicadas, para dizer o mínimo.

Protect the dolls

Conner Ives com a camiseta Protect the dolls.
Foto: Divulgação

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Há quem defenda que uma simples frase em uma peça de roupa não faça muito pelas comunidades marginalizadas. De fato, faz muito pouco ante a imensidão dos desafios. É importante entender se há alguma parceria com alguma instituição ou grupo de apoio, se a renda ou lucro serão revertidos para a causa. Essas iniciativas também raramente furam a bolha do mundinho e tendem a durar pouco. Com Conner Ives, porém, não foi assim.

Sua coleção de inverno 2025 foi inspirada em um aparente senso de desamparo generalizado. A camiseta “Protect the dolls” foi criada como uma forma acessível de fazer essa mensagem chegar a um número maior de pessoas, em especial as da comunidade LGBTQIA+. “As pessoas trans são rotuladas como ‘o outro’, acho que é a parte mais perigosa, porque enquanto os governos estão minando seus direitos, eles também criam o falso sentimento de que essas pessoas devem ser temidas”, disse o estilista em entrevista à ELLE estadunidense. 

A maior parte da renda de cada camiseta vendida, cerca de 70 ou 80%, é revertida para a ONG Trans Lifeline, uma linha telefônica que oferece apoio, acolhimento e orientação de ajuda para membros desse grupo. A peça custa 75 libras, cerca de 570 reais e, até a conclusão deste texto, foram arrecadados mais de 380 mil libras. O sucesso foi tão grande que superou a capacidade de produção da marca. As vendas agora são apenas sob encomenda.

Protect the dolls

Troye Sivan com a camiseta Protect the dolls.
Foto: Divulgação

A alta adesão não é por acaso. Os direitos de pessoas transexuais, já tão ameaçados, estão sendo veementemente atacados pela ascensão conservadora ao redor do mundo. Desde que tomou posse, o presidente estadunidense Donald Trump está tentando erradicar o que os conservadores gostam de chamar de “ideologia de gênero”. Em apenas alguns meses, ele restringiu o acesso a tratamentos e ajuda médica para menores de 19 anos e baniu o grupo do serviço militar, entre muitas outras medidas que colocam em cheque anos de luta. 

No começo do mês, a Suprema Corte do Reino Unido decidiu que a definição legal do gênero é baseada apenas no sexo biológico. Em fevereiro, a atriz Hunter Schafer teve seu passaporte emitido com o gênero masculino. O mesmo aconteceu com o visto dos Estados Unidos da deputada federal brasileira Erika Hilton, na semana passada.

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Willy Chavarria ao fim de seu desfile de inverno 2025.
Foto: Getty Images

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Camisetas como forma de protesto

Na temporada de inverno 2025, outras marcas também se posicionaram contra ações do presidente estadunidense. Willy Chavarria, de ascendência mexicana, recebeu os aplausos finais usando uma peça em que lia-se “How we love is who we are” (como amamos é quem nós somos), uma celebração do amor LGBTQIA+ em colaboração com a Human Rights Campaign. Já o estilista mexicano Patricio Campillo vestiu uma blusa com a estampa “El Golfo de México”, dias após Donald Trump anunciar que mudaria o nome da região para Golfo da América. 

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Patricio Campillo no desfile de inverno 2025.
Foto: Getty Images

Camisetas com slogans políticos não são uma novidade. Em março de 1984, a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher organizou um evento em sua residência oficial para celebrar os jovens designers da semana de moda de Londres. Acontece que sua popularidade era nula entre os criadores. Ninguém queria ir, mas não tinha muito como negar. Eis que estilista Katharine Hamnet apareceu lá com um camisetão com o dizer “58% Don’t Want Pershing”, um dado de uma pesquisa popular sobre o que os europeus achavam da proliferação de mísseis nucleares dos EUA no continente.

Formada pela Central Saint Martins, em Londres, Katharine ficou conhecida também pela estampa “Choose life”. Ela foi usada por George Michael e Andrew Ridgeley, do Wham!, no clipe de “Wake me up before you go-go”. Apesar de ter sido cooptada por ativistas conservadores contra o aborto, na época, o slogan promovia uma campanha anti-drogas e anti-suicídio.

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Foto: Reprodução

Na temporada de inverno 1994, a Maison Margiela lançou uma camiseta com a frase: “There is more action to be done to fight AIDS than wear this t-shirt but it’s a good start” (há mais a se fazer para combater a AIDS do que usar essa camiseta, mas é um bom começo). A peça foi relançada diversas vezes ao longo dos anos. A Margiela foi uma das primeiras etiquetas de luxo a criar uma campanha contínua com uma instituição que luta pelos direitos das pessoas vivendo com HIV. Neste caso, a escolhida foi a francesa AIDES. 

Em 2018, o estilista Jonathan Anderson fez uma série de camisetas com a obra do artista David Wojnarowicz, ativista pelos direitos de pessoas que vivem com HIV. A receita das vendas foi revertida à organização nova iorquina Visual AIDS, que apoia artistas com HIV. 

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Maison Margiela, inverno 1994.
Foto: Divulgação

Mudando o DDI para +55, Isa Silva, da marca Isaac Silva, se inspirou em Dandara, líder do Quilombo dos Palmares, para sua coleção apresentada na Casa de Criadores em abril de 2016. Na ocasião, a slammer Mel Duarte fez uma performance usando uma blusa com a estampa “Dandaras do Brasil”.

Desfile como plataforma de visibilidade

Slogans, no entanto, não são a única forma de protestar a favor de minorias ou comunidades marginalizadas. Com a popularidade de desfiles com plataformas de comunicação e entretenimento, uma simples temática ajuda a acender debates e provocar pensamentos e questionamentos sobre os mais variados aspectos.

Na estreia de Maria Grazia Chiuri na Dior, em 2016, a estilista criou uma camiseta com a estampa “We should all be feminists”, inspirada no livro de mesmo nome de Chimamanda Ngozi Adichie. Primeira mulher a comandar a casa, ela usou boa parte de seus desfiles para apresentar e enaltecer o trabalho de uma série de artistas, escritoras, artesãs e pensadoras.

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O verão 2017 de Ronaldo Fraga só com modelos trans na passarela.
Foto: Divulgação

Para o verão 2017, Ronaldo Fraga colocou apenas mulheres trans em sua passarela montada no Theatro São Pedro, em São Paulo. Com pouquíssimas modelos profissionais, o desfile falou sobre o dado trágico de que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. 

No desfile de inverno 2025 da Luar, o estilista dominicano Raul Lopez ressignifica a homofobia e xenofobia que sofreu e ainda sofre. As roupas estruturadas são usadas para imitar o movimento dos punhos usualmente associadas a homens gays, assim como a maneira com que as modelos seguram as bolsas na frente do corpo. Subverter elementos de preconceito também é uma maneira de tentar reescrever a história. 

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O desfile Dandaras do Brasil, de Isa Isaac Silva, na Casa de Criadores.
Foto: Divulgação

Representação, reconhecimento e pertencimento também são formas de expressões políticas e sociais poderosas na moda. A falta de modelos e estilistas racializados nas semanas de moda é uma realidade que tem mudado aos poucos. Antes de Isa Silva e Angela Brito estrearem na SPFW em 2019, havia apenas um estilista negro no line-up da maior semana de moda da América Latina: Luiz Cláudio, da Apartamento 03. Ateliê Mão de Mãe, Dendezeiro e Meninos Rei são três bons exemplos de etiquetas que integraram o calendário e vem transformando paradigmas da indústria.

Capacitação técnica e profissional é outro viés com impactos efetivos e práticos na integração social. Melhor exemplo em território nacional é o Projeto Ponto Firme, comandado por Gustavo Silvestre desde 2015. A iniciativa começou capacitando egressos e sentenciados do presídio masculino Adriano Marrey, em Guarulhos, por meio do crochê. Hoje, ele cresceu, virou escola para pessoas em situação de vulnerabilidade social, desfila na São Paulo Fashion Week, tem uma parceria duradoura com o estilista franco-suíço Kevin Germanier, e virou uma empresa fornecedora para uma série de marcas de moda.

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Projeto Ponto Firme, SPFW N58.
Foto: Divulgação

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