Ney Matogrosso é um patrimônio brasileiro. Este filme lhe faz justiça

Por muito pouco, Ney Matogrosso não jogou no lixo aquele que seria um dos seus maiores sucessos.

Quando o produtor Marcos Mazzola (1950-2007) lhe apresentou Homem com H, do compositor paraibano Antônio Barros, Ney a rejeitou, e entre seus argumentos estava o de que a canção não lhe batia, até por ser um forró.

“Se você não gravar essa música, ninguém mais poderá fazer isso,” Ney ouviu do amigo Gonzaguinha (1945-1991).

Com a antológica gravação de 1981, Ney transformou os versos sexistas de duplo sentido em uma ironia sobre sua coragem de combater o mundo – e caiu no gosto até dos homofóbicos que tanto o criticavam.

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Não à toa Homem com H é o título do filme, roteirizado e dirigido por Esmir Filho, que entra em cartaz na quinta-feira como um fiel retrato das incansáveis ousadias do biografado.

O cineasta, com admirável habilidade, condensa em duas horas a trajetória do artista nascido há 83 anos e ainda capaz de provocar plateias com performances vigorosas.

Quem representa Ney é o impressionante ator Jesuíta Barbosa, 33 anos, conhecido do filme Tatuagem (2013) e da novela Pantanal (2022), que extrapola a caracterização e atravessa todas as fases do artista com expressividade visceral e surpreendente.

O que se enxerga é o protagonista como um bicho que, apesar de constantemente acuado, reage a qualquer cerco autoritário.

Barbosa, sem mimetizá-lo, dá crescente credibilidade ao personagem e, deste desenho psicológico, deflagra tanto a intimidade como a arte de Ney, algo difícil de ser aprofundado com igual equilíbrio em biografias audiovisuais.

Se Barbosa naturalmente concentra as atenções, é importante salientar o ator Rômulo Braga, que interpreta o pai de Ney. “Ariscos, cabreiros, difíceis de dobrar”, observa a mãe (papel de Hermila Guedes), comparando pai e filho nas insuspeitas semelhanças.

O militar Antônio Matogrosso Pereira impunha em casa a rígida disciplina da caserna e se revoltava com a insubordinação do garoto. “Eu não quero filho viado!”, grita ele, que de pronto ouve a resposta em uma das cenas mais fortes: “Eu não sou viado, mas, quando for, o Brasil inteiro vai saber”.

É através da conturbada relação de pai e filho que o roteiro é estruturado para mostrar variações do autoritarismo, ou como Ney se recusou a aceitar imposições ao longo de sua vida.

Com atitudes muitas vezes impulsivas e até irracionais, Ney desafiou padrões de comportamento, a censura política e até a sombra da morte – simbolizada pela aids, na década de 1980, quando, mesmo perdendo pessoas amadas, acreditou que se manteria inabalável.

No país dos grandes cantores e cantoras, as cinebiografias se impuseram naturalmente – assim como os musicais de teatro. Cazuza – O Tempo não Para (2004), de Sandra Werneck e Walter Carvalho, Elis (2016), de Hugo Prata, e Meu Nome é Gal (2023), de Dandara Ferreira e Lô Politi, resultaram, no máximo, em bons filmes.

Comparados a Homem com H, entretanto, são reféns de um conservadorismo estético e de uma linguagem derivada da televisão que tornam questionáveis suas qualidades.  

A autoralidade de Esmir Filho em Homem com H é decorrente de sua experiência como cineasta experimental. Os Famosos Duendes da Morte (2009) e Verlust (2020) podem até ser longas-metragens esquisitos e pouco palatáveis, mas contêm ambições criativas. Agora amparado por uma grande produção, o diretor teve maturidade para explorar o potencial de um personagem instigante e entregou uma obra que, ainda que de fácil compreensão, comete seus atrevimentos estilísticos.

Homem com H é coerente com o espírito rebelde e transgressor de seu protagonista. Os enquadramentos não são típicos da televisão, as metáforas saltam aos olhos, as cenas de sexo esbanjam intensidade e os números musicais contribuem para a dramaturgia. O melhor exemplo é ver Cazuza (interpretado por Jullio Reis) cantando O Tempo não Pára em uma cena interrompida por um blecaute que simboliza a sua morte. Nada mais precisa ser dito.

Esmir Filho respeitou a inteligência do fã-clube do cantor e entendeu que, pontuando o que importa do artista Ney Matogrosso, revelaria o homem Ney de Sousa Pereira, alguém que raramente é visto sem maquiagem. “O palco é minha fantasia, minha válvula de escape, é onde ponho uma máscara para extravasar e tentar desreprimir as pessoas,” diz Jesuíta Barbosa na pele de Ney, em uma cena com o único marido do cantor, Marco (vivido por Bruno Montaleone).

A fala sintetiza o papel do artista, e o cineasta, sensível, entendeu que esta é a essência de Ney Matogrosso, um cabra macho pra danar, que espalha sem doutrinações a sua liberdade há mais de cinco décadas.

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