Cidade que fala: o poder da colaboração na transformação urbana

O que torna uma cidade verdadeiramente transformadora? Para Carla Link, mestre em Design Estratégico e fundadora da Talking City, a resposta está na colaboração. Desde 2012, ela se dedica a projetos de inovação social que exploram como o design pode ser um catalisador de mudanças nas cidades. Sua trajetória, que começou na publicidade, a levou a questionar as dinâmicas urbanas e a buscar alternativas para que as cidades se tornassem espaços mais inclusivos e conscientes.

Com um olhar afiado para as necessidades sociais e urbanas, Carla tem atuado como consultora, professora e palestrante, sempre com o foco de estreitar a relação entre governos, empresas e cidadãos. Através da Talking City, ela tem desenvolvido soluções que aproximam esses atores para co-criar espaços urbanos mais adaptados às necessidades de todos. Em entrevista ao Habitability, Carla compartilha um olhar sensível sobre como as cidades podem ser moldadas pela participação ativa e pela inovação social, destacando a importância de entender as cidades como ecossistemas vivos, onde cada pequeno gesto pode gerar um impacto significativo.

Você é formada em publicidade, mas direcionou sua carreira para o desenvolvimento de projetos de inovação social, criação de estratégias, plataformas e serviços voltados à melhoria da qualidade de vida nas cidades. O que a motivou a adotar esse foco nas questões urbanas e sociais?

Carla Link: Trabalhei por 10 anos na publicidade, mas a grande virada na minha carreira aconteceu quando me mudei para São Paulo. Embora já tivesse vindo para a cidade várias vezes a trabalho, ao me estabelecer aqui, senti o impacto de ser uma imigrante. Fiquei refletindo: “quem toma as decisões sobre a cidade?” Esse questionamento me marcou, especialmente ao pegar a linha amarela do metrô logo após sua inauguração e perceber como já estava lotada. A pergunta se repetia em minha mente: “como essas decisões são feitas?”

A partir daí como foi essa trajetória?

Carla Link: Decidi me aprofundar no tema e ingressei no mestrado em Inovação e Design Estratégico na Unicinos, em Porto Alegre/RS. O programa se destacava pelo grupo de pesquisa em inovação social. Embora não fosse focado em cidades, concentrei minha pesquisa nessa área, explorando o conceito de “comunidades criativas”, formadas por ações colaborativas e de baixo para cima. O Ocupa e Abrace, um projeto nascido em 2013 no bairro da Pompeia, em São Paulo/SP, foi meu objeto de estudo, refletindo o clima político e social do momento e o conceito de “cidade para pessoas“. Acompanhei de perto o desenvolvimento desse coletivo e ainda sou parte, embora de forma mais distante. Para mim, foi um laboratório prático sobre como cidadãos podem influenciar a transformação de suas cidades. A partir dessa experiência, comecei a estudar outros projetos semelhantes e percebi que, apesar das limitações, há muito o que podemos fazer. A Cidade das Hortas é um exemplo claro disso. Muitas vezes pensamos que nada pode ser feito, mas há inúmeras possibilidades de ação. Mesmo que não possamos implementar mudanças sozinhos, podemos apoiar, divulgar ou até financiar iniciativas que façam a diferença. 

Como surgiu a Talking City e qual é o principal objetivo do projeto?

Carla Link: A Talking City é uma empresa com a qual venho trabalhando desde 2017, atuando como consultora em projetos para empresas, organizações sociais e governos. Em 2023, uni forças com parceiros com os quais já colaborava e fundamos a Futurar.co. Nosso trabalho consiste em desenvolver projetos voltados para serviços públicos, com o objetivo de apoiar organizações sociais, muitas vezes em parceria com governos, a criar soluções que promovam a colaboração entre cidadãos, organizações e o poder público, sempre com foco em melhorar a qualidade de vida das pessoas.

O que torna essa abordagem interessante é que conseguimos, de fato, apoiar e aplicar esse repertório na prática. A dificuldade, tanto para os governos, quanto para a sociedade civil, está em entender como essas conexões podem realmente acontecer. Sempre foi essa a principal dúvida que recebi de empresas, marcas e até de indivíduos: ‘Por onde eu começo? Como eu começo?’. Precisamos adotar uma visão mais criativa, reconhecendo que existem atores dentro do setor público dispostos a implementar soluções inovadoras e a melhorar os serviços. No entanto, o que frequentemente falta é um repertório técnico diversificado. Muitos profissionais do setor público vêm de áreas voltadas à gestão, o que dificulta a identificação de pontos de conexão, uma vez que estão profundamente imersos nos processos. Tem sido uma experiência gratificante poder ajudar organizações a pensarem nessas formas de ação. 

Na sua palestra no TEDx, você fala bastante sobre o projeto “Minha Cidade Segura”, que propõe uma abordagem inovadora para um tema complexo como a segurança pública. Como o projeto funciona e quais foram as principais barreiras enfrentadas ao tentar implementar essa nova perspectiva sobre segurança?

Carla Link: O projeto “Minha Cidade Segura” foi onde testamos diversas abordagens, reunindo profissionais de diferentes áreas e organizações para buscar soluções colaborativas. Como coletivo, nosso objetivo era entender como atuar como agentes de inovação nesse contexto. Com o tempo, decidimos aprofundar nossas ações em um tema específico: a violência contra a mulher.

No período de 2018 a 2021, realizamos uma série de iniciativas, escutamos vítimas, promovemos rodas de conversa, visitamos delegacias, conversamos com advogados e especialistas, além de participar de fóruns de inovação e workshops. Buscamos conectar pessoas e instituições para encontrar formas mais eficazes de abordar o tema. Durante a pandemia, com o lançamento da “Ainá Mulher”, focamos na disseminação de informações relevantes sobre violência de gênero. Um dos passos importantes foi mapear a jornada da mulher em situação de violência, identificando os recursos públicos e privados disponíveis em diferentes territórios, como casas da Mulher Brasileira, delegacias especializadas e hospitais de referência. O objetivo era entender quais locais oferecem acolhimento mais sensível e quais são os atores envolvidos nesse apoio. Nosso papel foi principalmente de articulação e conexão.

Qual foi o maior desafio que vocês enfrentaram ao longo dessa trajetória do coletivo?

Carla Link: Realizamos diversas ações importantes, mas, apesar dos esforços, não conseguimos encontrar um modelo de negócio sustentável que garantisse a continuidade do projeto. Por isso, decidimos encerrar as atividades. Mas é importante ressaltar que ao longo dessa jornada, percebemos que estávamos lidando com um tema extremamente amplo e complexo. A segurança, em geral, tende a ser uma pauta negativa, ao contrário de outras áreas que frequentemente apresentam propostas claras e propositivas. Por exemplo, iniciativas como o Instituto Caminhabilidade, antigo SampaPé, propõem uma cidade melhor para mulheres e crianças, de forma clara e tangível, como também faz Barcelona. Curitiba ficou conhecida por sua proposta de cidade sustentável, o que atraiu parceiros e interesses voltados para essa visão. 

Já a segurança é vista de forma diferente. Marcas e empresas geralmente hesitam em se associar a esse tema, que envolve questões sociais profundas e desafiadoras, além de ser extremamente amplo. Os estudos e dados sobre segurança ainda são pouco explorados globalmente, o que dificulta ainda mais a implementação de soluções eficazes.

Como você avalia os principais desafios relacionados à coleta e ao uso de dados sobre segurança?

Carla Link: Os dados de segurança enfrentam muitos desafios, desde a coleta até o uso. Se pensarmos, por exemplo, no feminicídio, esse crime pode ser registrado simplesmente como homicídio. Então, não temos uma garantia de que os dados estejam corretos, pois tudo depende da forma como a ocorrência é registrada. Além disso, há questões culturais envolvidas, que influenciam tanto na forma como se analisa quanto se reporta. Se olharmos, por exemplo, para dados sobre violência contra a mulher, existe uma subnotificação enorme. A gente não sabe ao certo qual é o número real de casos, o que dificulta qualquer ação baseada em dados concretos.

Por isso, existe um trabalho de base muito importante sendo feito por organizações como o Atlas da Violência e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que atuam justamente para ampliar e qualificar os dados disponíveis. Existem ainda outros institutos voltados para o mapeamento e a coleta dessas informações, mas os dados ainda são muito fragmentados, cada estado faz de um jeito. Embora existam algumas iniciativas para unificar tudo isso, o processo ainda é bastante complexo.

A segurança pública costuma ser percebida como uma atribuição exclusiva do Estado e das forças policiais. De que forma cidadãos comuns também podem assumir um papel ativo na construção de cidades mais seguras?

Carla Link: Falar sobre segurança pública é sempre complexo, porque há questões que, de fato, só o poder público pode resolver. Mas é preciso reconhecer que, diante dessa complexidade, também somos parte do problema e, justamente por isso, parte da solução. É nesse ponto que entra a possibilidade de pensar de forma criativa e explorar novos caminhos.

Tenho alguns textos sobre vocação urbana, em alguns deles, menciono experiências com empresas, como uma seguradora com a qual conversei certa vez. Essas companhias, que detêm um grande volume de dados sobre acidentes, poderiam colaborar com iniciativas como o Mobilab, laboratório de inovação urbana que já funcionou em São Paulo.

A proposta do Mobilab era justamente essa: convidar startups para pensar soluções para os desafios da cidade. É um modelo em que todos ganham, o cidadão, ao ter uma cidade mais segura; a seguradora, ao reduzir riscos; e o poder público, ao ter acesso a informações valiosas para a tomada de decisão. Se uma seguradora identifica, por exemplo, que certo cruzamento tem alto índice de acidentes, esse dado pode orientar uma intervenção urbana simples e eficaz. Claro que nem todos os problemas têm soluções fáceis, mas muitos têm, sim, alternativas viáveis. 

Na sua avaliação, além do governo e da sociedade civil, as empresas também têm um papel importante na melhoria das cidades. Mas como criar pontes efetivas entre esses atores para que colaborem de forma concreta e estruturada no desenvolvimento urbano?

Carla Link: As cidades estão cada vez mais complexas. São muitos interesses em jogo, muitas dinâmicas acontecendo simultaneamente. Diante disso, enxergo dois grandes desafios. O primeiro é nos reconhecermos como parte da solução, assumindo um papel ativo na transformação urbana. O segundo é acreditar que existem, sim, pessoas e instituições dispostas a fazer diferente.

É preciso abandonar a ideia de que o “governo” é uma entidade única e homogênea. Na prática, existem muitas instâncias de governo, muitas esferas de atuação e, dentro delas, profissionais comprometidos em entregar experiências melhores para os cidadãos. O primeiro passo é justamente esse: buscar aproximação, identificar quem está trabalhando de forma ética e sensível, e construir pontes com essas iniciativas.

Você poderia citar um exemplo de como a união entre sociedade civil e poder público pode gerar transformações nas cidades?

Carla Link: Um exemplo recente disso aconteceu em uma rua da Vila Mariana, em São Paulo/SP. Um grupo de moradores se mobilizou contra a continuidade de uma obra de túnel que removia dezenas de árvores e apresentava uma série de irregularidades. Mas não foi um movimento apenas reativo, eles se organizaram com base em dados técnicos, questionaram o contrato da obra, apontaram falhas em relação às diretrizes ambientais e urbanísticas da cidade e levaram o caso ao Ministério Público. O resultado foi a paralisação da obra.

Essa mobilização foi além dos protestos. Reuniões com especialistas, articulação com parlamentares, diálogo com a mídia, grupos de WhatsApp e uma rede de apoio sólida mostraram que é possível unir cidadãos e agentes públicos em torno de um propósito comum. É um exemplo claro de que, com articulação, informação e persistência, é possível transformar a cidade, mesmo diante de estruturas rígidas.

Você também menciona o Horta das Corujas.

Carla Link: Sim, trata-se de um espaço comunitário em São Paulo/SP que se consolidou com o tempo, com muito engajamento. Uma das idealizadoras, a Cláudia Visoni, chegou a concorrer como vereadora, já foi deputada estadual e hoje está empreendendo em uma plataforma que aproxima investidores de iniciativas como essa, o que ela chama de microrrevoluções urbanas. É isso que eu acredito: às vezes basta um experimento, uma primeira ação, para você começar a se conectar com um ecossistema mais amplo. E aí surgem outras formas de operar, que não passam só pelo ativismo tradicional, mas também por negócios de impacto, movimentos organizados, projetos que articulam diferentes setores.

Por onde começar a ser um “produtor” da cidade?

Carla Link: Em Pinheiros, bairro de São Paulo/SP, uma senhora, cujo nome não me recordo, se tornou uma referência local ao cuidar das praças do bairro. Ela articula com a comunidade, mobiliza vizinhos para ajudar na manutenção e até na criação de hortas. Sua relação com a subprefeitura é tão estreita que, quando há ações de melhoria na área, ela é convidada a participar ativamente.

Outro exemplo vem de uma escola da Zona Sul da capital paulista, no bairro do Paraíso, que desenvolveu um projeto de inovação voltado para uma praça pública. Após ajudar a conectar a escola com a subprefeitura, a equipe de alunos conversou com a comunidade, levantou necessidades locais e implementou melhorias no espaço. Esse projeto de educação urbana não só transformou o local, mas também reafirma o papel das escolas como portas de entrada para conversas sobre o futuro da cidade.

É a ideia de que o futuro está nas crianças.

Carla Link: Como professora, já incentivei meus alunos a explorar soluções para questões públicas ou a pensar em intervenções diretas em espaços urbanos, como praças e áreas comunitárias. Isso reflete a importância de despertar nos cidadãos a consciência de que fazem parte de um ecossistema maior e que suas ações podem contribuir para o desenvolvimento urbano. Esses exemplos mostram que a participação ativa pode nascer de qualquer lugar, seja por uma senhora cuidando de praças ou por jovens alunos discutindo soluções. O importante é reconhecer o poder de transformação que temos ao entender e interagir com a cidade ao nosso redor.

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