Saúde Única na Amazônia

A primeira sessão plenária da Reunião Magna ABC 2025, realizada no Museu do Amanhã entre os dias 6 e 8 de maio, foi coordenada pelo médico Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), e especialista em saúde pública da Fiocruz-Amazônia. Ele iniciou explicando o conceito de Saúde Única (One Health): “Não estamos preocupados apenas com a saúde humana, mas com a saúde veterinária, saúde da floresta e dos alimentos. Essa integração da saúde não é nova para o pessoal que trabalha com doenças infecciosas, mas recentemente é um conceito mais presente na cabeça das pessoas, de modo geral.”

Lacerda, que também é professor do Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e professor adjunto da Universidade do Texas – Braço Médico (UTMB), fez uma diferenciação linguística bem interessante.  “Em português, único significa ser UM; em inglês, unique significa exclusivo, peculiar. Então em português se diz saúde única, mas em inglês se diz usa one health para ter o mesmo sentido.”

A responsabilidade pela saúde em termos de governo não é única. Existem os níveis federal, estadual e municipal. O financiamento não deve ser único, devemos ter várias fontes. Lacerda deu como exemplo a nova realidade política nos EUA, que atingiu programas amazônicos. Já a Amazônia, de acordo com Lacerda, é unique, é peculiar. “Mas não é única, são várias Amazônias”, destacou. Ele considerou também a ciência amazônica como unique, no sentido de que na Amazônia tudo é muito específico e sua ciência depende do conhecimento do contexto.

Apresentou então os pesquisadores unique que falariam na sessão:  as médicas Adele Benzaken e Alice Sanna, e o médico e Acadêmico Pedro Vasconcelos.

SUS na floresta

Diretora médica do Programa Global da Aids Healthcare Foundation (AHF), Adele Schwartz Benzaken tem doutorado em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fiocruz. Entre outras funções nacionais e internacionais de destaque, dirigiu o Instituto Leonidas e Maria Deane/Fiocruz Amazônia (2021- 2023); foi vice-presidente do comitê de especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS e membro do comitê de certificação da eliminação da sífilis e do HIV da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS).

Nascida e criada em Manaus, Adele Benzaken acompanhou o surgimento da HIV na Amazônia e levou esse conhecimento para o mundo. Ela ressaltou que o SUS que já enfrenta inúmeras desigualdades como déficit de médicos, falta de unidades de saúde, falta de leitos hospitalares e de saneamento básico nas cidades da região, agravadas pela violência e homicídios que acompanham as frentes de mineração e pesca ilegal. Na região, além desses problemas existe a questão do difícil acesso. “O SUS dá o direito universal à saúde, mas na Amazônia ainda é um desafio”, ressaltou a pesquisadora.

Ela contextualizou o tema, explicando que a Amazônia Legal, ou Amazônia Brasileira, é uma região 5,1 milhões de km2, que correspondem a 60% do território brasileiro, envolvendo os estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Roraima, Rondônia, Mato Grosso, Maranhão e Tocantins, num total de 722 municípios). A população de 38 milhões de pessoas, incluindo 400.000 indígenas com 170 grupos étnicos distintos, é jovem, com 25% dela entre 10 e 39 anos. 41% das pessoas são pobres, percentual mais alto do que nas outras regiões do país, que vivem num ambiente com alto índice de violência e práticas ilegais, como a exploração inadequada dos recursos naturais. É um dos biomas de maior biodiversidade do mundo e desempenha um papel fundamental no equilíbrio ambiental e climático do planeta e na conservação dos recursos hídricos.

A exploração excessiva dos recursos naturais e o desenvolvimento científico e tecnológico estão causando danos ambientais prejudiciais à sobrevivência da população regional. São muitos os problemas: eliminação inadequada de resíduos, contaminação da água com mercúrio do garimpo, exposição a substâncias químicas e pesticidas, perda de biodiversidade e alimentos, poluição do ar.

Os mosquitos causam malária, dengue e outras arboviroses. Os pesticidas provocam câncer e perda de biodiversidade. Outras contaminações, especialmente as causadas pela falta de saneamento básico, causam doenças como diarreia e leptospirose. Entre as mortes de crianças menores de 5 anos, 25% poderiam ser evitadas com a redução dos riscos ambientais.

Os incêndios transcendem o nível local. Em 2024, chegaram a escurecer o céu da cidade de São Paulo. O sistema aquífero da grande Amazônia pode abastecer o mundo por 200 anos. No entanto, em 2023 e 2024 ocorreu uma seca no estado que impactou a vida de toda a população, impediu a comercialização de produtos e o acesso à saúde.

Benzaken ressaltou que as populações amazônicas estão continua e intensamente em interação com a natureza e, consequentementa, com patógenos que circulam entre os animaise no meio ambiente.  As comunidades indígenas e ribeirinhas estão especialmente em risco de surtos causados por patógenos emergentes, pois se moveme entram em contato com outras populações, incluindo as urbanas.

Qual seriam as características necessárias ao sistema de saúde para atender a essa população? As barreiras geográficas, de acordo com Benzaken, são muito citadas. A oferta de serviços e financiamento para lidar com essas distâncias, porém, são muito poucas. Há soluções conhecidas que devem ser implementadas para cobrir a Amazônia. Mas ela afirmou: é preciso inovação.

As soluções conhecidas precisam escalar exponencialmente. “São as unidades fluviais móveis, barcos, para oferecer atendimento primário. São os navios-hospitais, de instituições militares, que oferecem assistência, e de universidades privadas, que os utilizam como hospitais escola. Há também as lanchas, chamadas de “ambulanchas”. Mas estas sofrem com a natureza da Amazônia: encalham em bancos de areia, enfrentam os banzeiros, as tempestades e trechos inacessíveis na seca.

Ambulancha e barco-hospital (Fotos de Adele Benzaken)

Durante a covid, apesar dos esforços de algumas instituições como a Fiocruz Amazônia, que capacitou muitos profissionais, a falta de infraestrutura foi um dos grandes fatores que levou à mortalidade tão alta nos estados: “Não havia leitos de UTI em nenhum município e faltou oxigênio”, lembrou a palestrante,

Benzaken focou na vulnerabilidade à sífilis e ao HIV, doenças às quais os povos indígenas são extremamente vulneráveis. Ela explicou que a falta de energia elétrica impede um atendimento laboratorial preciso. Por isso, ela destacou a importância dos testes rápidos para diagnosticar essas doenças na Amazônia. Na gestão do ministro da Saúde Alexandre Padilha, conseguiu-se mudanças na política de saúde pública na região, como a incorporação desses testes no SUS local. Usando esse recurso, em dois anos conseguiram testar 46 mil indígenas. “Temos heróis aqui na região. São os profissionais da saúde indígenas, que têm capilaridade para chegar aonde o povo está, porque acessam as populações caminhando.”

Em 2023, a Fiocruz Amazônia estabeleceu um mestrado em saúde indígena em Tabatinga, no estado do Amazonas, visando diminuir a desigualdade na formação educacional das populações indígenas, oferecendo conhecimentos e habilidades relevantes para a saúde. Mas a região ainda está longe de uma solução completa, enfrentando problemas intersetoriais, sendo que as populações ainda lutam por uma agenda de pesquisa que os inclua.

Adele Benzaken finalizou sua apresentação com um texto de Samuel Benchimol, economista, cientista e professor brasileiro que defendia a sobrevivência do homem com a floresta. Dizia ele que “o mundo amazônico não poderá ficar isolado ou alheio ao desenvolvimento brasileiro e internacional. Porém, terá que se autossustentar em quatro parâmetros e paradigmas fundamentais. Ele deve ser economicamente viável, ecologicamente adequado, politicamente equilibrado e socialmente justo.”

Arboviroses emergentes e vírus da febre Oropouche: de doença febril a doença congênita, microcefalia e morte

O Acadêmico Pedro Vasconcelos (Foto: Marcos André Pinto)

Médico pesquisador do Instituto Evandro Chagas (IEC), o qual já dirigiu entre 2014 e 2019, o Acadêmico Pedro Fernando da Costa Vasconcelos, que também é professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), participou diretamente na caracterização de mais de dez mil isolados virais e na identificação taxonômica de mais de 100 vírus novos para a ciência. Nascido em Monte Alegre, no Pará, ele coordenou a equipe do Instituto Evandro Chagas que demonstrou originalmente ao mundo que o zika vírus causa microcefalia e outras malformações congênitas.

Vasconcelos contou que entre 1954 e 2022, mais de 20 mil cepas de vírus foram isoladas de 220 tipos de diferentes de arbovírus e outros vírus zoonóticos de vertebrados. Ele explicou que o desmatamento desloca os animais que são hospedeiros de vários vírus, como aves, jabutis, preguiças e macacos, aumentando muito o risco de disseminação desses vírus para humanos. “Alguns deles são associados a epidemias na Amazônia brasileira, como chicungunha, dengue, mayaro, oropouche, encefalite, febre amarela e zika. O manejo inadequado de ecossistemas naturais na Amazônia resulta em emergência e reemergência de vírus.”

Por conta disso, às vezes acontecem “explosões” de contaminação. O mosquito aedes aegypti, por exemplo, é uma praga que transmite mais de 10 a 20 doenças nos diferentes continentes. Cada doença dessas atinge diferentes órgãos do corpo humano, algumas atingem vários órgãos.

Para conseguir o controle, Vasconcelos relata que este requer a captura de animais como pequenos mamíferos, aves e insetos hematófagos, para entender quem são os hospedeiros e quem são os transmissores. “Esse levantamento é feito em regiões diversas da Amazônia”, contou.

De acordo com o Acadêmico, diversos fatores estão associados à emergência desses vírus, como a urbanização sem planejamento, escassez de programas de controle de mosquitos, mudanças no uso da terra e ataques aos ecossistemas, incluindo desmatamento, circulação dos vírus por meio do deslocamento de pessoas contaminadas, novas linhagens de vírus, mudanças climáticas (El Niño). “Os projetos de desenvolvimento, como abertura de estradas, construção de hidrelétricas, projetos de exploração mineral, são ambientes ótimos para emergência e reemergência de vírus”, apontou Vasconcelos, se forem favoráveis ao vírus. Se os ambientes não forem próprios para sua reprodução, os vírus desaparecem.

Um exemplo de consequência dessas intervenções nos ecossistemas é o percurso do vírus da febre Oropouche. Até 1960, de acordo com Vasconcelos, ele estava restrito ao Pará. A partir desse período, se disseminou por outros estados vizinhos e hoje está em todo o país. Os hospedeiros são preguiças, macacos e aves silvestres. O transmissor principal é o mosquito maruim. Além das doenças já conhecidas, recentemente foi identificada meningoencefalite provocada pelo oropouche. Recentemente, foi identificada transmissão congênita e morte. Os estudos mostram que os vírus estão se transformando por meio de rearranjos genéticos – por isso seu controle é cada vez mais fundamental para a saúde das populações regionais e de todo o país.

Malária na Amazônia: o desafio das populações móveis e de difícil acesso

Alice Sanna (Foto: Marcos André Pinto)

Investigadora coordenadora do projeto CUREMA (Radical CURE for MAlaria among highly mobile and hard-to-reach populations in the Guiana Shield) e pesquisadora assistente no Laboratório de Doenças Parasitárias do IOC-Fiocruz, a médica Alice Sanna atua na avaliação de intervenções inovadoras em saúde populacional, com foco especial no combate à malária entre populações móveis envolvidas na mineração de ouro artesanal e em pequena escala na Amazônia.

Sanna explicou que a malária é uma doença muito antiga, com disseminação mundial, causada por parasitas Plasmodium spp, transmitidos por mosquitos fêmeas da espécie Anopheles. Em 2023, ocorreram cerca de 250 milhões de casos e 600 mil mortes, concentrados principalmente na África subsaariana. Nas Américas, os casos estão concentrados na região amazônica, com mais impacto nas populações móveis e de difícil acesso.  As espécies de parasitos na região são plasmodium vivax, que provoca muitas recaídas, e plasmodium falciparum, que provocam 1/3 dos casos, com maior letalidade.

Ela apresentou a experiência do grupo de pesquisa com que trabalha, que atua no Platô das Guianas, região montanhosa e heterogênea do ponto de vista socioeconômico, cultural e político, mas com semelhanças ecológicas. Em termos populacionais, é caracterizada por intensa migração e movimentos pendulares ligados à mineração do ouro.

Alice Sanna relatou experiências bem-sucedidas no combate à malária no Suriname e na Guiana Francesa. Afirmou que elas podem se capitalizadas e transmitidas para outros contextos com desafios semelhantes, como distanciamento, alta mobilidade e impossibilidade de propor diagnósticos e tratamentos regulares para malária. “No esforço para eliminar a malária, é essencial abordar as especificidades das populações mais afetadas.”

O Suriname é um país coberto por floresta amazônica e seus 500 mil habitantes estão concentrados no litoral, onde a malária já foi eliminada a décadas atrás. No começo dos anos 2000, a palestrante relatou que o Ministério da Saúde adotou medidas de sucesso, com a introdução de medicamentos com artemisininas. “Conseguiram um financiamento de um fundo global e promoveram um programa ambicioso para diagnósticos em público indígena e quilombola”, observou.

Concentrada nas áreas de mineração, a atuação do governo surinamense envolveu controle vetorial e contratação de membros das comunidades de mineração, que receberam capacitação e supervisão para fazerem diagnósticos, busca ativa e distribuição de mosquiteiros. Com esse trabalho, os últimos casos de contaminação por plasmodium falciparum ocorreram em 2019, e por plasmodium vivax, em 2021.

Na Guiana Francesa, existe o paradoxo de ser França na Amazônia. A região usufrui do potencial financeiro do governo francês e da União Europeia, mas existe imensa desigualdade socioeconômica. Embora tenham se beneficiado da redução da malária no Suriname, a partir de 2010 houve um recrudescimento da doença no país. Entre 2015 e 2018 foi estabelecido um programa de testagem e tratamento, com intervenções que atingiram públicos indígenas e quilombolas.

O desafio, de acordo com Sanna, estava no público da mineração ilegal, atuante em áreas de proteção ambiental. “É um público extremamente móvel – circulam pelo Suriname, Amapá, Guiana, Roraima – e, com isso, disseminam a doença, dado que 20% dessa população é avaliada como portadora do parasito da malária”, relatou a pesquisadora. Como eles têm medo de procurar ajuda médica e serem presos, a exterminação da doença fica mais difícil.

Por conta desse contexto, foi desenvolvido e implementado o projeto Malakit (2018-2020), um esforço conjunto da pesquisa dos países envolvidos com a população local. A ideia era dar ao público as ferramentas para se auto-tratar, garantindo que fosse de uma forma segura. Assim, foram distribuídos “malakits” gratuitos – para quebrar o tráfico de medicamentos – com informação e medicação. Além do folheto explicativo, compunham o kit três testes rápidos, tratamento para sintomas e tratamento anti-malárico, além de mosquiteiro impregnado.

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A implementação foi realizada por agentes comunitários por aproximadamente 18 meses, em pontos-chave de mobilidade dos garimpeiros. O Projeto CUREMA, do qual Alice Sanna também participou, acrescentou ao kit material para o enfrentamento do plasmodium vivax.

Na fase de avaliação, 70% dos 3.733 participantes do programa relataram uso correto do kit e o impacto na incidência de malária foi muito grande, com prevenção de mais de 40% dos casos da doença e interrupção da série temporal. “Essas políticas de saúde pública implantadas no Suriname e na Guiana Francesa mostraram que é possível controlar a malária na Amazônia”, disse Alice Sanna. Só é preciso vontade política.

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