Sessão Temática: Amazônia Urbana

Há uma verdadeira revolução acontecendo na arqueologia amazônica. Há anos que a ciência já conhece sítios espalhados pela região, mas o que cientistas munidos de drones e sensores têm desvendado é uma constelação de assentamentos antigos, duas vezes maior do que se supunha, conectados por estradas. “Esses sítios são muito mais extensos do que as aldeias contemporâneas. (…) Alguns de tamanho comparável a Tenochtitlán, a lendária capital dos Astecas”, informou o arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos debatedores da sessão plenária “Amazônia Urbana”, realizada durante a Reunião Magna ABC 2025.

As descobertas corroboram as observações do frei espanhol Gaspar de Carvajal. Em 1542, Carvajal descreveu “grandes cidades” à beira dos rios, enquanto participava de uma expedição que descia o Amazonas. Esse urbanismo endêmico da Amazônia foi o que o antropólogo Michael Heckenberger chamou nos anos 90 de “cidades-jardim”, povoamentos onde existia um gradiente de roçados entre a ocupação humana e a floresta densa. “A arqueologia tem um pouco de receio de tratar esse tipo de assentamento como ‘cidade’, mas por que não considerá-los uma forma de urbanização pré-colombiana?”, refletiu o professor.

Nesses sítios se encontra uma quantidade maior de terra preta, um tipo de solo rico em carbono e nutrientes, que, segundo pesquisas recentes, foram produzidos pelos próprios indígenas a partir do manejo de resíduos e do fogo controlado (saiba mais nesta excelente matéria do Jornal da USP). Essa verdadeira biotecnologia indígena é muito semelhante a alguns tipos de adubo utilizados na produção agrícola de ponta, e é um excelente exemplo da importância de aliar os saberes tradicionais à ciência moderna.

“Os dados genéticos sugerem uma conexão direta entre os povos indígenas modernos e ancestrais. (…) É através do contato direto com as tribos e seus anciãos que descobrimos, pela memória oral, onde muitos desses assentamentos estavam localizados”, explicou Góes. Para ele, é preciso abandonar o termo “pré-história” e começar a pensar numa “história antiga” do Brasil.

Imagem do que sensores acoplados em drones revelam por baixo das árvores (Slide apresentado por Eduardo Góes)

A urbanização do presente

As evidências de uma Amazônia habitada em larga escala desde os tempos pré-colombianos bate de frente com o imaginário do colonizador. Este sempre a enxergou como uma fronteira desabitada para onde a sociedade ocidental deveria avançar sem fazer concessões. “As cidades atuais são frutos de um desenvolvimento extrativista que ignorou a história anterior. Foi necessário apagar da memória que a Amazônia era um espaço habitável e pertencente a um conjunto de povos. (…) Os povos indígenas passaram da condição de senhores para os ‘novos pobres’ da periferia urbana”, avaliou o arquiteto Gustavo Dúran, pesquisador na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), do Equador.

A falta de um pensamento urbanista endêmico para a região fez com que não surgissem alternativas. Continuamos replicando modelos de desenvolvimento inadequados para as peculiaridades amazônicas. “Tivemos recentemente eventos climáticos assustadores – secas extremas, ondas de calor, fumaça de queimadas afetando cidades inteiras. (…) Mas o debate sobre o desenvolvimento econômico segue esvaziado. Precisamos repensar a questão agropecuária, motor principal do desmatamento. Teremos essa coragem?”, indagou a socióloga Edna Maria Ramos de Castro, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Ambos comandaram a parte contemporânea do debate, que se propõe a pensar o presente e projetar o futuro das cidades amazônicas. Além das duas grandes metrópoles, Belém e Manaus, a região é marcada por uma miríade de pequenas e médias cidades de crescimento desordenado e, muitas vezes, ligadas à uma nova fronteira extrativista. “A cidade que mais cresceu no Censo de 2022 foi Canaã dos Carajas, associada à exploração mineral da Vale”, pontuou Saint Clair Cordeiro da Trindade Jr., professor titular do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA) e moderador do debate.

Saint Clair Trindade (em pé), Gustavo Durán, Eduardo Góes, Edna Ramos de Castro (Foto: Marcos André Pinto)

Hoje, de cada dez habitantes da Amazônia, sete estão em cidades. Com o crescimento desordenado, problemas clássicos da rápida urbanização começaram a aparecer. O crime organizado já é um problema sério na região e estabeleceu conexões com organizações do resto do país e do exterior. A falta de saneamento básico é outra urgência, que é ainda mais grave num bioma acostumado a uma dinâmica de secas e cheias. “Também há uma fragilidade na educação e na renda, com a maior parte da população trabalhando na informalidade”, listou Ramos de Castro.

Esses problemas não respeitam fronteiras e também se verificam na Amazônia andina. Embora a maior cidade amazônica do Equador tenha 100 mil habitantes, a região possui uma maior taxa de pessoas vivendo em regiões urbanas que no resto do país. Gustavo Durán explica que esse desenvolvimento se deu através de uma ocupação de baixa densidade. “Isso tem dois problemas, consome mais floresta do que o necessário e, do ponto de vista da urbanização, gera cidades segregadas”.

Ele compara as cidades amazônicas de seu país à mariposas, onde o corpo seria o centro e as enormes asas as periferias. “Estamos procurando entender como funcionam essas ‘asas’. Primeiro, estudamos a relação entre as atividades extrativas e a ocupação. Segundo, vemos como a emergência de um proto-mercado imobiliário tem disseminado um estilo arquitetônico em nada adaptado às condições locais. (…) Precisamos fazer emergir uma nova cidadania capaz de pensar num futuro que já chegou”, explicou.

Assista à mesa-redonda a partir de 1h38m do vídeo abaixo:

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