Sobre trilhos e divisões, conheça o bairro Hudson Yards

Por décadas, o West Side de Manhattan foi uma região esquecida no mapa urbano de Nova Iorque. Com raízes portuárias e industriais, marcada por trens, armazéns e o caos de um passado movido a carvão, a área carregava o estigma de decadência e marginalização,  como no caso de Hell’s Kitchen, bairro vizinho associado à violência e que inspirou o musical West Side Story, uma versão moderna de Romeu e Julieta ambientada na cidade dos anos 1950. 

Várias tentativas de revitalização fracassaram ao longo do tempo, com poucas exceções, como a construção do Centro de Convenções Jacob K. Javits em 1986. Já nos anos 2000, chegou-se a cogitar a região como sede olímpica para 2012, mas a proposta não avançou. Foi apenas com o aporte bilionário de grandes incorporadoras, somado ao apoio do poder público, que o Hudson Yards saiu do papel. 

Erguido sobre trilhos ferroviários ainda em operação e com um investimento estimado em US$ 25 bilhões, o megaprojeto não só redesenha o espaço urbano nova-iorquino, como também levanta debates urgentes sobre inclusão, identidade e os impactos da gentrificação na cidade.

Hudson Yards, o bairro que nasceu sobre trilhos

Foto: Dario Bajurin/ Adobe Stock

A história do Hudson Yards começa literalmente sobre os trilhos. Para vencer os desafios de construir em cima do West Side Yard, um pátio ferroviário em pleno funcionamento, com 30 trilhos e três túneis, foi necessário um feito de engenharia comparável a levantar uma cidade sobre outra. Tudo isso sem interromper o funcionamento da ferrovia, que conecta Nova Iorque a Nova Jersey.

Para isso, engenheiros criaram uma imensa laje de concreto e aço que cobre os trilhos como uma tampa, permitindo a construção de edifícios de mais de 100 andares em segurança. O resultado: um novo bairro vertical, onde torres de vidro e aço passam a sensação de tocar o céu e onde o velho West Side industrial deu lugar a um polo de negócios, cultura e habitação.

O projeto transformou uma área equivalente a 140 campos de futebol em um novo epicentro urbano com uso misto. São 16 edifícios planejados, incluindo residências, hotéis, escritórios, áreas verdes, espaços culturais e um shopping center com mais de 100 lojas. A proposta é criar uma “cidade dentro da cidade”.

Da “Avenida da Morte” ao High Line

Foto: Francois Roux/ Shutterstock

A reinvenção do Hudson Yards é inseparável da história de sua vizinhança. No final do século XIX e início do XX, o trecho era conhecido por um apelido sombrio: a “Avenida da Morte”. A Décima Avenida era cortada por trens de carga em nível com as ruas, resultando em centenas de mortes de pedestres. 

Para tentar amenizar os riscos, a ferrovia contratava “cowboys urbanos”, homens a cavalo que agitavam bandeiras na frente dos trens. A solução definitiva só veio em 1933 com a construção da High Line, uma linha ferroviária elevada que, décadas depois, se transformaria em um parque suspenso e símbolo de revitalização urbana.

Hoje, a High Line é uma das atrações mais visitadas de Nova Iorque. Com seus mais de dois quilômetros de extensão, o parque suspenso combina paisagismo, arte e urbanismo em um espaço público que percorre o Hudson Yards de ponta a ponta. Ele costura o bairro ao restante de Manhattan, conectando a nova arquitetura ao legado industrial.

The Shed, Vessel e a arte como motor urbano

Foto: Tada Images/ Shutterstock

A cultura ocupa um papel central na proposta urbana do Hudson Yards, posicionando o bairro como um novo polo de expressão artística e de inovação em Nova Iorque. Um dos elementos mais emblemáticos dessa aposta é o The Shed, centro cultural inaugurado em 2019 e projetado pelos escritórios Diller Scofidio + Renfro em colaboração com o Rockwell Group. 

Sua principal característica é a arquitetura cinética, isto é, uma concha telescópica em aço e vidro que se move sobre trilhos, permitindo expandir o edifício para criar uma praça coberta de 1,6 mil m². Essa flexibilidade transforma o The Shed em um espaço mutável, capaz de abrigar desde exposições imersivas até concertos e espetáculos de grande escala. Com capacidade para até 2 mil pessoas em pé ou 1,2 mil sentadas, o local busca romper as barreiras entre os diferentes gêneros artísticos, promovendo uma programação interdisciplinar e acessível ao público.

Foto: Massimo Salesi/ Shutterstock

Já o Vessel, projetado pelo designer britânico Thomas Heatherwick, é talvez a obra mais visualmente marcante do bairro (e também a mais controversa). Com 16 andares, 154 lances de escadas, 2,5 mil degraus e 80 plataformas de observação, a estrutura em espiral foi concebida como um ponto de encontro interativo, onde as pessoas pudessem subir, circular e explorar diferentes vistas de Manhattan e do próprio Hudson Yards. Inspirada em formas de colmeias, a escultura custou aproximadamente US$ 200 milhões e rapidamente se tornou um ícone no Instagram, mas também alvo de críticas, sendo apelidada por parte da imprensa e dos habitantes como “escada para lugar nenhum”.

O Vessel também se tornou centro de uma grave preocupação pública após três suicídios registrados entre 2019 e 2021. A falta de barreiras físicas efetivas em seus patamares levou à sua interdição por mais de três anos. Após pressões de especialistas em saúde mental e de familiares das vítimas, o monumento passou por adaptações com a instalação de redes de proteção e o aumento da vigilância. 

A reabertura ao público ocorreu no final de 2024, com novas regras de visitação, incluindo acesso restrito aos níveis superiores, presença obrigatória de acompanhantes e reforço na equipe de segurança. 

Hudson Yards é um bairro para poucos?

​Mesmo com esforços para promover diversidade social, o Hudson Yards permanece como um dos bairros mais caros de Nova Iorque. Segundo um estudo da PropertyShark, o preço mediano de venda de imóveis na região é de aproximadamente US$ 7,5 milhões.

Para mitigar essa exclusividade, foi implementado o programa de habitação acessível “80/20”, que reserva 20% das unidades residenciais para famílias de baixa e média rendas. Um exemplo é a Maybury Tower, que disponibilizou 114 apartamentos por meio de uma loteria habitacional. Os aluguéis variam conforme a renda e o tamanho do domicílio, com estúdios entre US$ 1.655 e US$ 3.015, apartamentos de um quarto entre US$ 1.769 e US$ 3.225, e unidades de dois quartos entre US$ 2.114 e US$ 3.861.

Em comparação, o aluguel médio de um apartamento de um quarto em Nova Iorque é de aproximadamente US$ 4.310 por mês. Isso evidencia que, embora os valores no Hudson Yards sejam elevados, as unidades acessíveis representam uma oportunidade relativamente mais econômica para residir em uma área central e valorizada da cidade.​ Ainda assim, o alcance dessas iniciativas é limitado e insuficiente para garantir inclusão plena em um bairro marcado por altos padrões de luxo.

Aliás, o The New York Times criticou o projeto, destacando que Hudson Yards nasceu em um período de incertezas econômicas. O bairro foi visto como uma solução para a falta de espaços de escritórios de alto padrão na cidade, mas isso justifica a criação de uma área tão exclusiva? A pergunta ainda é válida: “É esse o tipo de bairro que Nova Iorque merece?” Com o projeto finalizado, essa nova realidade urbana já está estabelecida.

Embora Hudson Yards represente um avanço em termos de infraestrutura e inovação, ele também reflete um modelo de urbanização que reforça desigualdades. O grande desafio é saber se esse tipo de desenvolvimento realmente atende às necessidades da cidade ou se apenas intensifica as divisões sociais que já existem.

Revitalização de áreas portuárias pelo mundo

A reurbanização de áreas portuárias é uma tendência global que ganhou força a partir da segunda metade do século XX, impulsionada por mudanças tecnológicas na logística marítima e pela crescente valorização de terrenos urbanos centrais. Cidades como Londres, Hamburgo e Buenos Aires transformaram antigos portos industriais em bairros modernos, combinando usos residenciais, comerciais e culturais.​

Foto: imageBROKER.com/ Shutterstock

O Docklands, em Londres, é um dos exemplos mais emblemáticos de reurbanização portuária. Antigamente uma área industrial em declínio, foi transformada em um distrito financeiro e residencial moderno, abrigando o Canary Wharf e outras infraestruturas de alto padrão. O projeto envolveu parcerias público-privadas e enfrentou desafios significativos, como a necessidade de infraestrutura de transporte e habitação acessível. Hoje, o Docklands é um símbolo da revitalização urbana bem-sucedida no país.

Foto: Werner Lerooy/ Shutterstock

Já em Hamburgo, o projeto HafenCity é considerado o de maior reurbanização da Europa. Situado na antiga área portuária da cidade, o projeto visa expandir o centro urbano em 40%, incorporando residências, escritórios, espaços culturais e de lazer. A iniciativa destaca-se pela integração de arquitetura moderna com a preservação de estruturas históricas, como os armazéns de Speicherstadt. A conclusão do projeto está prevista ainda para este ano de 2025.​

Foto: Marcelo Somma/ Shutterstock

Enquanto Puerto Madero, em Buenos Aires, passou de uma área portuária abandonada a um dos bairros mais valorizados da cidade. A transformação começou em 1989, com a criação da Corporación Antiguo Puerto Madero, uma parceria entre os governos nacional e municipal. O projeto revitalizou 170 hectares, introduzindo residências de alto padrão, escritórios, restaurantes e espaços culturais. Hoje, Puerto Madero é um exemplo de sucesso em reurbanização portuária na América Latina.

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Essa onda global de reurbanização portuária revela um esforço coletivo das cidades em ressignificar seus passados industriais, transformando territórios antes degradados em polos vibrantes e multifuncionais. Hudson Yards se insere nesse movimento como um dos exemplos mais ambiciosos, não apenas pela escala e ousadia arquitetônica, mas por simbolizar o desejo de Nova Iorque de reinventar sua própria paisagem urbana. Erguido sobre trilhos e carregado de tecnologia, luxo e arte, o bairro sintetiza os dilemas da urbanização do século XXI: até onde o desenvolvimento pode ir sem perder de vista a inclusão, a memória e o acesso democrático à cidade?

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