Quem cuida das cidades que não dormem?

Em grandes cidades ao redor do mundo, a vida noturna é muito mais do que lazer – ela movimenta a economia, influencia a cultura e impacta a segurança pública. Para equilibrar esses aspectos e garantir que bares, casas de show e demais espaços noturnos coexistam de forma harmoniosa com a população, surgiu uma figura inovadora na administração pública: os prefeitos da noite.

A iniciativa teve origem em Amsterdã e, posteriormente, foi adotada por outras cidades dos Países Baixos, como Roterdã e Haia. Atualmente, estima-se que entre 80 e 100 municípios ao redor do mundo, incluindo Sydney, Paris e Boston, contem com cargos dedicados à governança da vida noturna. Os chamados “prefeitos da noite” atuam como mediadores entre empresários, artistas, órgãos públicos e comunidades locais, buscando equilibrar o desenvolvimento do setor de entretenimento com a qualidade de vida da população. 

Além disso, em muitos centros urbanos, há uma parcela significativa da população que trabalha à noite e na madrugada, e garantir boas condições para esses trabalhadores também é uma parte essencial dessa governança. No final de 2024, a primeira prefeita da noite de Nova Iorque, Ariel Palitz, esteve em Brasília com o objetivo de sensibilizar os gestores públicos sobre a importância de reconhecer e apoiar aqueles que vivem e trabalham sob a luz da lua. Palitz, que ocupou o cargo de 2018 até novembro de 2023, afirmou que, em muitas grandes cidades, a vida noturna ainda é encarada mais como um problema do que como um recurso valioso para os desenvolvimentos urbano e econômico.

Os prefeitos da noite e seu papel na vida noturna?

O conceito de “prefeito da noite” tem ganhado relevância em diversas cidades ao redor do mundo, refletindo a necessidade de uma governança mais estruturada para a vida noturna. Embora a definição do cargo varie de acordo com cada localidade, a função geralmente envolve o equilíbrio entre o setor de entretenimento, serviços públicos e a qualidade de vida dos cidadãos que vivem e trabalham no período noturno.

Em algumas cidades, o prefeito da noite tem atribuições voltadas exclusivamente para a indústria do entretenimento, com foco na regulamentação e no fortalecimento de bares, casas de shows e eventos culturais. Já em outras, o escopo é mais amplo, abrangendo desde o transporte e a segurança pública até questões de mobilidade e iluminação urbana. 

Em determinados casos, o papel do gestor noturno está mais próximo do controle e fiscalização, enquanto em grande parte dos municípios que adotaram essa figura, a ênfase está na busca por soluções inovadoras para potencializar atividades noturnas e resolver desafios históricos do setor.

Foto: christo mitkov christov/ Shuttertsock

A projeção do cargo também varia de acordo com a cidade. Em Londres, por exemplo, a pressão pública tem aumentado para que o governo adote medidas eficazes contra o fechamento de pubs e outros estabelecimentos tradicionais, já que o setor enfrenta uma crise, segundo reportagens da Sky News e do The Guardian. Já em Barcelona, a implementação do cargo é mais recente, refletindo o crescente interesse das cidades europeias na formalização de políticas voltadas à governança da vida noturna.

Dessa forma, fora do Brasil, a organização dos interesses do setor noturno tem se fortalecido por meio de associações que atuam na defesa de políticas públicas para o segmento. Esse modelo já está presente em países como Espanha, Argentina, Colômbia, Austrália e Reino Unido, demonstrando um movimento global em prol de uma vida noturna mais estruturada e reconhecida como parte fundamental do ecossistema urbano.

Nova Iorque e o escritório da vida noturna

Foto: Mulevich/ Shutterstock

Um dos exemplos mais estruturados dessa iniciativa está em Nova Iorque, onde o Office of Nightlife (Escritório da Vida Noturna) foi criado em 2018 durante a gestão do então prefeito Bill de Blasio. A cidade, cujo setor noturno movimenta cerca de US$ 35 bilhões anuais e emprega mais de 300 mil pessoas, segundo informações da prefeitura, identificou a necessidade de um órgão dedicado a mediar as demandas desse ecossistema dinâmico. 

Em uma entrevista ao Valor, a ex-prefeita da noite de Nova Iorque, Ariel Palitz, destaca a importância de abandonar o modelo que simplesmente aplica à noite as mesmas regras pensadas para o dia. Segundo ela, essa abordagem ignora as especificidades do funcionamento urbano noturno e resulta, na maioria dos casos, em repressão e desprestígio para os estabelecimentos e trabalhadores que dependem desse setor. Garantir que essas pessoas tenham acesso a transporte, segurança e infraestrutura adequada é um dos desafios dos prefeitos da noite, que precisam equilibrar os interesses econômicos com a qualidade de vida da população.

Segundo ela, o estigma negativo em torno da vida noturna é resultado de uma construção histórica. Nos Estados Unidos, essa percepção está fortemente ligada ao período da Lei Seca (1920-1933), quando a venda de álcool foi proibida em todo o país. Mesmo após a revogação da proibição, as regulamentações impostas pelas autoridades permaneceram excessivamente rígidas, perpetuando um modelo de controle que ainda impacta o setor noturno.

Um exemplo sulamericano

Enquanto na Europa e nos Estados Unidos o cargo de prefeito da noite já está mais difundido, na América Latina essa função ainda é rara. Atualmente, apenas a cidade de Pereira, na Colômbia, conta com um representante oficial para a governança noturna, com foco na melhoria da segurança pública. 

A estratégia tem sido reconhecida nacionalmente. De acordo com o jornal El Expresso, durante o evento Expobar 2024, a Associação de Bares da Colômbia (Asobares) destacou os avanços da cidade na gestão noturna, enfatizando o compromisso da administração municipal em promover uma vida noturna segura e economicamente vibrante. ​

O Gabinete do Prefeito Noturno, comando por Mauricio Alberto Vega López, atua nas chamadas “zonas quentes”, áreas com altos índices de criminalidade e consumo de substâncias. A estratégia combina operações de controle e vigilância para promover uma vida noturna mais segura e organizada, garantindo que festas e eventos ocorram de forma legal e responsável. Além disso, busca-se a recuperação de espaços públicos, como parques e praças, tornando-os mais acessíveis à comunidade.

Essa iniciativa é conduzida em parceria com a Polícia Nacional e outras autoridades locais, reforçando a segurança e a governança eficiente do período noturno. Desde sua implementação, nove estabelecimentos que permitiam a entrada de menores em ambientes com álcool e outras substâncias foram interditados. Além disso, 53 empresas foram fechadas por irregularidades documentais ou descumprimento das normas estabelecidas.

E os prefeitos da noite no Brasil?

​Na década passada, o Brasil iniciou discussões sobre a implementação do cargo de prefeito da noite, inspirado em modelos europeus. Entretanto, essas iniciativas não avançaram significativamente e o País ainda não conta com uma estrutura formalizada nesse sentido. Em São Paulo, por exemplo, iniciativas voltadas para a regulamentação da vida noturna foram propostas, mas sem a criação de um cargo oficial. A cidade conta com programas como o PSIU (Programa Silêncio Urbano), que fiscaliza o impacto sonoro de bares e casas noturnas, mas não há uma governança estruturada que media interesses entre o setor econômico e a comunidade.

O Instituto “No Setor” tem promovido em Brasília debates sobre o direito à cidade durante o período noturno. Em outubro de 2024, o instituto organizou um evento para discutir o conceito de “prefeitura da noite”, apresentando exemplos internacionais de gestão noturna, como os de Nova Iorque e Amsterdã. O objetivo é sensibilizar gestores públicos sobre a importância de políticas que atendam às necessidades de cidadãos que vivem e trabalham durante a noite.

Em sua coluna no jornal Brasil de Fato, o coordenador do Instituto No Setor Rafael Reis, sugere que a criação de uma “Prefeitura da Noite” em Brasília poderia ser um passo importante para garantir uma cidadania que funcione 24 horas. Esse órgão atuaria na mediação de conflitos entre comerciantes, moradores e trabalhadores noturnos, além de dialogar com as forças de segurança e o sistema de transporte. ​

A experiência de cidades como Amsterdã e Nova Iorque demonstra que uma abordagem mais equilibrada pode beneficiar tanto empresários quanto moradores.

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