Beth Ditto fala à ELLE sobre Trump, ativismo e chegar aos 40 anos

O Gossip, de Beth Ditto, se apresenta neste sábado (24.05), no C6 Fest, em São Paulo. Confira a seguir a entrevista com a cantora publicada no Volume 18 da ELLE, em dezembro de 2024:

“Boa noite, nós somos o Kings of Leon.” No único show que fez no Brasil, em 2012, Beth Ditto apresentou o Gossip com essa piada, enquanto o Kings of Leon tocava no palco ao lado. “Eles estavam sempre por perto (nos festivais). E as duas bandas não podem ser mais diferentes”, conta, rindo, Beth, vocalista do Gossip, à ELLE. Naquela noite, o trio, formado pela cantora, a baterista Hannah Billie e pelo guitarrista Nathan Howdeshell, seguiu com uma apresentação visceral. Além dos hits do grupo, Beth cantou desde o tema da novela Avenida Brasil (“Oi, oi, oi”), sucesso de audiência na época, até covers de Ramones e Madonna, extrapolando o tempo estimado.

Passados 12 anos, a banda volta ao Brasil como uma das principais atrações do C6 Fest, que acontece entre 22 e 25 de maio, em São Paulo. Nesse meio-tempo, o grupo se dissolveu e Beth lançou um disco solo, Fake sugar (2017). Mas o fim não seria definitivo: em 2019, o trio se reuniu para a turnê que comemorou os dez anos de Music for men (2009), álbum do hit “Heavy cross”, e, pouco antes da pandemia, voltou ao estúdio. Em março do ano passado, lançaram Real power, o primeiro registro da banda desde A joyful noise (2012).

beth ditto 1

O Gossip: Beth Ditto, a baterista Hannah Billie (ao fundo) e o guitarrista Nathan Howdeshell
Foto: Cody Critcheloe

LEIA MAIS: Patti Smith: “Não se preocupe, vai dar certo, vamos dar um jeito”

 “Quando começamos, muito do Gossip era sobre fugir. Isso sempre esteve presente na música. Nós sobrevivemos. Viemos do nada e saímos de lá. E estar aqui 20 anos depois e ainda fazer música juntos é simplesmente incrível”, disse a vocalista na divulgação do lançamento.

Coal to diamonds (2012), o livro de memórias de Mary Beth Ditto, 43 anos, apresenta essas origens. A cantora nasceu e cresceu em Judsonia, Arkansas, “um lugar onde o encanamento interno era um luxo, esquilo era uma refeição e educação sexual era ensinada durante o último ano do ensino médio (depois de muitas garotas engravidarem e abandonarem os estudos)”, descreve o livro. Sua iniciação punk começou no ensino médio. Na sequência, ela se mudou para Olympia, em Washington, uma cena fértil no final dos anos 1990 para riot grrrls.


Na primeira década dos anos 2000, quando o rock invadia as pistas, o Gossip estourou com o disco Standing in the way of control (2006) e sua mistura de punk, soul e pop. Beth se consolidou como um símbolo dos movimentos queer e body positive, quando eles ainda não estavam no centro do debate. Enquanto isso, desfilou para Jean Paul Gaultier, assinou uma linha para a MAC Cosmetics e desenhou coleções plus size. 

De Londres, a cantora conversou com a ELLE sobre interpretar uma cantora gay em uma série ambientada no universo do country e sua jornada ao lado de Nathan, guitarrista e seu grande parceiro musical no Gossip.

Como foi retornar ao estúdio com o Gossip depois de mais de uma década? Inicialmente, Real power seria seu segundo álbum solo, certo?

Sim. Queria escrever um disco e estava trabalhando com algumas pessoas, mas não sentia que o coração delas estava nisso. Queria que a composição fosse mais orgânica e com alguém em quem pudesse confiar. Amo fazer música com o Nathan porque é tão fácil. E o Rick (Rubin, famoso produtor que assinou Music for men e já estava trabalhando no novo álbum) também adora ele. Liguei para o Nathan e perguntei se ele queria ir ao Havaí (onde Rubin tem um estúdio, na Ilha de Kauai). Em alguns dias, ele estava lá. E então a covid chegou.

Vocês tiveram que fazer uma pausa na gravação durante a pandemia. Como foi voltar ao estúdio depois disso? E como acha que o Real power foi influenciado por esse período?  

A covid trouxe medo e morte. Vidas estavam sendo reviradas e ninguém conseguia ganhar dinheiro. Bandas grandes, como o Coldplay, ficam bem, mas grupos como nós, que vivem de turnê em turnê, se não podem fazer isso, estão ferrados. E no meio musical todo mundo estava dizendo que a música ao vivo nunca mais iria voltar. Era assustador. E não gosto quando a escassez toma conta da minha cabeça. Quando você está com medo, isso afeta tudo o que você faz. Mas eu, o Rick e o Nathan nos damos muito bem, conversamos muito e processamos as coisas. Se havia medo, ansiedade, podíamos dividir uns com os outros. Na música, você nem sempre tem para quem perguntar “estou maluca?”. Não há terapeuta de banda. Quer dizer, nós vimos o Metallica…

“Para ser sincera, o Gossip não tem batalhas de ego, e isso é algo que sempre me faz sentir sortuda quando escuto sobre os dramas de outras bandas”

É uma parte estranha daquele documentário… (Metallica: some kind of monster, de 2004, registra um período conturbado do grupo, em que os integrantes contaram com um psicólogo.) 

Acabei de revê-lo porque precisava assistir a parte que o terapeuta tenta escrever letras com a banda. Que obra de arte! Nós vivemos tanta merda juntos – tivemos diferentes parceiros, acompanhamos términos de relacionamento e a morte de nossos pais, ficamos sem grana, roubamos juntos para comer. Você não pode substituir isso. Para ser sincera, o Gossip não tem batalhas de ego, e isso é algo que sempre me faz sentir sortuda quando escuto sobre os dramas de outras bandas. Eu e Nathan não brigamos. Ele diz sempre: “Ok, tudo bem”. Sou sempre eu quem fala com a imprensa e ele não liga. Eu falo: “Você cuida do trabalho duro e eu falo com as pessoas”. (risos) Não sei se haverá outra pessoa assim.   

Você é uma grande performer, corajosa, engraçada. Você se sentiu à vontade no palco desde o início ou foi um processo gradual?  

Acho que era normal para mim. Não me lembro de ter tido “o” momento. Não tenho a voz mais incrível, não sou Adele, Florence (Welch), e não acho isso ruim. Sempre escutei que tinha presença de palco, e não entendia o que era. Agora que estou mais velha, compreendo. Acho que sempre me senti em casa no palco. Para mim, é mais fácil estar em frente de um monte de pessoas do que de apenas algumas. Acho que várias cantoras se sentem assim, porque é tão íntimo. Quando é para uma multidão, é muito mais fácil. Outra coisa é que gosto de seres humanos, de conexão, de ver como as plateias reagem a diferentes coisas. Não me lembro de cada show, dos locais, mas sempre me lembro das pessoas. É por isso que não uso monitor de ouvido: não consigo ouvir o que as pessoas estão dizendo. Odeio, me faz sentir que estou sozinha.

LEIA MAIS: Rita Lee volta para casa em “Mania de você”

Como foi atuar em Monarch, há dois anos? Você tinha alguma familiaridade com o universo do country? Pode se identificar de alguma forma com sua personagem na série, Gigi?  

Pude me conectar com ela. A música country estava em todo o lugar em Arkansas. No sul dos Estados Unidos, é inevitável. Então, já sabia muito. Meu pai e meu irmão tinham uma banda que tocava muita música country. Na série, éramos eu e Trace Adkins, que é um cantor de country (ele protagoniza a produção ao lado de Susan Sarandon). Ele é um completo trumpista, mas o engraçado é que nos demos bem. Nós éramos as duas únicas pessoas que de fato eram daquele mundo. Tenho um sotaque sulista, que as pessoas de fora dos EUA não identificam. Eles tentavam escrever músicas com o sotaque do country sulista e a gente se olhava espantado: “Isso não faz sentido!” (risos) Eles criaram a Gigi como uma cantora gay, o que me deixou muito feliz. Fiz vários amigos, aprendi muito. Era para a série ter sido gravada em quatro meses, mas levou nove. Foi maluco. Mas não me sinto uma atriz.  

Você trabalhou com diversas grifes e criou coleções plus size. Acredita que a moda está de fato mais democrática do que 20 anos atrás?  

Com certeza. Tudo está mudando tão rapidamente agora. Nada é o que foi há dez anos ou no pré-pandemia. Música, moda, nada voltou como antes. O mundo esqueceu que ainda estamos nos recuperando de um trauma global e levará tempo para nos ajustarmos. Passei por um período difícil na pandemia, perdi muito da minha energia e ainda estou tentando me recuperar. Quando tinha 20 anos, as conversas sobre body positivity, fat positivity, feminismo radical e cultura queer eram completamente diferentes. Se não estivesse em uma entrevista com um jornalista que veio da mesma cena de onde vim ou soubesse do que estava falando, tinha que explicar tudo do zero. Eles não entendiam ou não concordavam. Isso realmente mudou. Gênero, raça e etnia ainda têm um longo caminho a percorrer. Mas sinto que as pessoas estão realmente se esforçando e trabalhando muito pela inclusão. Não é nem uma opção. Me sinto realmente esperançosa.

“Não tenho a voz mais incrível, não sou Adele, Florence (Welch), e não acho isso ruim”

Como você recebeu a notícia da eleição de Trump? Você teme retrocessos em relação ao movimento feminista ou ao direito ao aborto, que sempre defendeu? (“Standing in the way of control”, um dos maiores sucessos da banda, defende o casamento entre pessoas do mesmo sexo.)

Sim, a ponto de me afastar do ativismo digital – sentia que ele não estava sendo efetivo. Foi de cortar o coração ver as pessoas tão divididas quando concordavam sobre a mesma coisa. “Podemos ter uma trégua para garantir que essa pessoa não seja eleita? Podemos tentar de uma forma melhor?” Então, saí das redes sociais. Só queria ficar em contato com a minha comunidade e descobrir o que iria fazer. Sabia que ele iria vencer e não queria me entregar ao desapontamento que tive em 2016 (quando Trump derrotou Hillary Clinton). Não iria perder minha energia. O que eu temia irá acontecer: as pessoas que votaram nele irão se ferrar. Não sou a pessoa que fala: “Eu te avisei!” Mas ele não está trabalhando por ninguém. Essa é a loucura. É um circo. Sei que é um privilégio viajar o mundo, conversar com pessoas de diferentes perspectivas, ver como elas vivem. Os estadunidenses não sabem o que é um sistema de saúde gratuito, que as coisas podem ser melhores. Elas alimentam essa grande mentira, e é difícil ver isso, especialmente de onde venho, de um Estados Unidos rural. Vai ser uma merda, vai ser difícil. Dessa vez, será ainda pior, o gabinete está ainda mais louco. As pessoas precisavam ter antevisto esse desastre e espero não estar certa, mas acho que estou e não confio nos estadunidenses.  

Completar 40 anos teve algum impacto em você?

Fiz 40 anos durante a pandemia. Então, não teve uma grande festa. Foi só eu, meu parceiro Teddy (Kwo, um homem trans que toca baixo com o Gossip em turnês), nosso amigo Matthew e champanhe. Eu me sinto a mesma, mas é tipo “merda, eu tenho 43 anos, isso é tão estranho”. Acho que fazer 50 será feroz, porque é a metade de um século. Mas minha mãe ainda é jovem, tenho vários sobrinhos jovens, há muita energia por perto. A única coisa diferente é meu útero, que está enlouquecendo. Ele não sabe o que quer, ele tem um pensamento e engrenagens próprias, está controlando meu corpo. O resto está ok. Outra coisa é que as pessoas veem você como alguém de 43 anos, mas me vejo como uma adolescente e percebo que sou a mais velha entre as pessoas à minha volta e entre as minhas sobrinhas: “Porra, sou a adulta aqui!”

LEIA MAIS: Karen O, do Yeah Yeah Yeahs, conta como equilibra rock e maternidade




Adicionar aos favoritos o Link permanente.