Diversidade Cultural na Amazônia

A quarta plenária da reunião Magna da ABC 2025 ocorreu no dia 7 de maio, no Museu de Amanhã, coordenada pelo líder indígena André Fernando Baniwa, com apresentações de Auricélia Arapium, coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA); do presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Indígenas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Roraima, Ivo Cipio Aureliano, que é advogado indígena do povo Macuxi; e do antropólogo Ruben Oliven, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências para a região Sul.

André Baniwa começou agradecendo o convite para estar “num lugar de pensadores, de construir visão de futuro, analisar a história e o tempo que vivemos. Na cultura indígena também existe isso. Ele, que é empreendedor social, ambientalista, ativista indígena dos direitos humanos, professor, escritor e político, falou da preocupação como fim do mundo, questão trazida pela intensidade das mudanças climáticas e pela recusa de grande parte da humanidade em mudar seus hábitos e valores em prol da natureza – e da sobrevivência.

André contou que nasceu ouvindo falar no fim do mundo, que iria acabar no ano 2000. Não acabou. Mas muitas tecnologias indígenas foram condenadas como demoníacas, muitos povos foram dizimados, muitas línguas foram extintas. Foram muitos os impactos sobre a vida dos povos indígenas. “Estes grupos têm aguentado a violência, o racismo. Nós que estamos hoje aqui somos restos desses povos”, afirmou.

Ele colocou uma pergunta-chave: como estas discussões sobre mudanças climáticas, aumento de temperatura, incertezas impactam nos jovens? O fim do mundo está se aproximando? Não temos esperança? Como será o futuro? Como será a vida dos nossos filhos, dos nossos netos? “Por isso acho que estamos aqui, para tentar unir esforços e pensar juntos em soluções”, declarou.

Baniwa citou Ailton Krenak, que em seus livros afirma que “a humanidade entrou pelo cano”. “Pensando bem, os povos indígenas entraram pelo cano a alguns séculos atrás. Então, sejam bem-vindo a esse lugar onde todos vivemos”, ironizou. Analisar essa realidade, sem interferências, é o que fazem os povos indígenas por meio da ayahuasca. O antropólogo contou que tinha um tio pajé, aquém um dia perguntou se o mundo ia mesmo acabar. “E ele me respondeu: ‘Que mundo? O sol e a lua estão aí, como sempre. As estrelas estão no céu. O que mudou? O comportamento das pessoas, que fazem coisas erradas e estão provocando essas consequências climáticas que estão aí. As pessoas, portanto, é que vão acabar, e não o mundo.”

Sobrevivência indígena depende de luta constante contra apagamento

A liderança indígena do povo Arapium, Auricélia Arapium, é coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), que defende os direitos dos povos indígenas. Representou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) na COP 28. Ela luta pelo acesso a políticas de educação e saúde, defende os territórios, modos de vida, a floresta e os rios contra violência e negação de direitos, enfrentando especialmente o garimpo ilegal.

Ela confessou que as palestras que estava assistindo na Reunião Magna da ABC 2025 a assustam um pouco. “Como fazer um enfrentamento contra tantos tipos de violações a que os povos da região estão submetidos, de modo a preservar nossas culturas, nossas tradições? Sou do Pará. São mais de 180 povos na Amazônia, sendo que os mais ameaçados são os que vivem em isolamento voluntário”.

Auricélia relatou que na semana anterior, “os parentes” – que é como chamam outros povos indígenas – ocuparam a Secretaria de Meio Ambiente do Estado do Pará. “E isso nem teve visibilidade. Mas precisa ter!  Porque o governo renovou o contrato de uma mineradora dentro de território indígena”, ressaltou a palestrante, que tem como uma das principais bandeiras a luta contra Projeto de Lei 191/2020, que liberaria terras indígenas para mineração. Ela atuou, inclusive, no Acampamento Terra Livre 2022.

Outra de suas bandeiras é a educação pública indígena. “No ano passado ocupamos a SEDUC e passamos 30 dias lá, porque o governo criou uma lei para destruir a educação pública do Pará, tirando as aulas presenciais e impondo aulas remotas nas escolas indígenas, nas escolas do campo, nas escolas das populações tradicionais. Nós conseguimos reverter essa situação”, destacou Auricélia. E a partir daí, várias outras lutas se somaram, com manifestações públicas diárias, seja dentro ou fora de Belém.

“É isso que a gente enfrenta todos os dias: violações de direitos, tentativas de apagamento cultural. E olha que eu nem falei das religiões que entram nos nossos territórios e se somam a todos esses retrocessos, a todas essas violências que enfrentamos diariamente na Amazônia brasileira.”

Saberes indígenas e ciência não indígena: diálogos urgentes para a proteção da Amazônia e seus povos.

Além de advogado e presidente de comissão de defesa indígena na OAB-RR, Ivo Cipio Aureliano ou Ivo Macuxi, como é conhecido, integra a Rede de Advogados Indígenas do Brasil, com atuação nas diversas instâncias do Judiciário brasileiro em defesa dos direitos indígenas, e é membro da Comissão Especial de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas do Conselho Federal da OAB. Atua ainda como professor voluntário da língua macuxi pelo Programa de Valorização das Línguas Indígenas de Roraima da Universidade Federal de Roraima (UFRR). Integra ainda o Grupo de Pesquisa Estratégica da Escola Superior do Ministério Público do Estado do Pará, na linha de pesquisa sobre Direitos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável. Atualmente, exerce a função de coordenador-geral da Força-Tarefa da Funai para a implementação do Plano de Desenvolvimento Sustentável da Terra Indígena Yanomami, com foco na promoção do bem viver dos povos indígenas. Também atua como assessor jurídico da Associação dos Povos Indígenas da Terra São Marcos (APITSM).

Ivo destacou uma questão fundamental do tema Amazônia: falar sobre ela sem os povos indígenas não tem sentido, se perde a essência da discussão. “Quando somos convidados a trazer nossas vozes, nossas reflexões como indígenas da Amazônia, que nasceram, viveram e carregam toda essa ancestralidade, isso não é apenas um gesto de escuta, mas também um gesto de reconhecimento e responsabilidade coletiva entre a ciência indígena e a ciência não indígena”, pontuou o advogado. “Não há futuro para a Amazônia sem seus povos e não há futuro para a ciência que ignora a diversidade de saberes. Este é um chamado à ação para pesquisadores, cientistas, formuladores de políticas, organizações e cidadãos. É hora de escutar, conversar, dialogar e agir coletivamente.

A urgência do tema exige diálogo, escuta ativa do que os indígenas presentes estão dizendo, compromisso e, o mais importante, ação. “É justamente nesse encontro, ou nesse choque de mundos — como costumo chamar — de culturas, de saberes, de ciências, que se abre a possibilidade de construir uma fórmula, como a ciência costuma dizer, ou pavimentar um caminho de diálogo entre os saberes. Como podemos dialogar na proteção da Amazônia e dos povos que nela habitam há milênios?”, questionou Cipriano.

O palco sobre o qual essa resposta precisa ser construída, de acordo com Cipriano, é doloroso. Segundo o relatório Global Witness 2022, a cada dois dias um ambientalista ou defensor do meio ambiente é assassinado no mundo. “Praticamente a metade é de indígenas e afrodescendentes — aqueles que carregam a ancestralidade e não abrem mão do território, que estão fortemente vinculados, não só fisica, mas espiritualmente, e defendem a causa com a própria vida”, relatou Ivo Cipriano.

No Brasil, por exemplo, em 2023 foram registrados 25 assassinatos. E, entre 2012 e 2023, no mundo, foram mais de 176 indígenas assassinados por defenderem seus territórios, que não são apenas números, são pessoas que foram pais, mães, filhos, amigos, que tiveram esse compromisso de defender a vida. “São perdas que marcam nossos corpos e nossa espiritualidade”, lamentou o líder Macuxi.

Durante a pandemia, os advogados indígenas atuaram juridicamente para responsabilizar o Estado brasileiro pelas mortes, exigindo medidas urgentes de proteção. Mas, infelizmente, a violência persiste. “Temos em vigor a Lei 14.701, que institui o marco temporal — uma medida que fragiliza a proteção dos territórios indígenas e de suas lideranças. Recentemente, o Congresso Nacional discutiu um grupo de trabalho para liberar mineração, exploração de petróleo, de gás e empreendimentos em terras indígenas. Mas continuamos sonhando que é possível construir um mundo diferente”, afirmou Cipriano.

Hoje, a ciência ocidental reconhece a importância dos povos indígenas. Segundo relatório da ONU de abril de 2024, divulgado agora em 2025, mesmo representando apenas 6% da população global, os povos indígenas protegem 80% da biodiversidade remanescente do mundo. “Continuamos contribuindo com nossas tecnologias, nossas ciências, nossos conhecimentos — não só para nós, mas para toda a humanidade”, declarou o palestrante.

Ele reconhece como importante trabalho do Acadêmico Eduardo Góes Neves (USP), que diz, em seu livro Sobre os Tempos do Equinócio, que “os povos indígenas não apenas habitam a floresta: eles a construíram. São cientistas da floresta. Guardiões de tecnologias ancestrais. Conhecem o solo, os ciclos das chuvas, as propriedades das plantas”, citou Ivo Macuxi.

As cosmologias indígenas, de acordo com Cipriano, não são apenas crenças – são formas sofisticadas de interpretar e cuidar da vida. “A ciência não indígena pode e deve apoiar pesquisadores liderados por indígenas — e temos vários. Deve produzir conhecimento em colaboração horizontal, com participação indígena. Deve reconhecer e validar epistemologias não ocidentais, difundir nossos saberes nos espaços políticos e acadêmicos, como o que ocupo agora. Esse é o papel de uma ciência que quer ser justa, comprometida, plural”, argumentou o advogado.

Cipriano citou seu grande líder, [o Acadêmico] Davi Kopenawa, que lembra a todos que precisamos sonhar com a Terra, pois ela tem coração, respira, sente — é um ser vivo que precisa ser protegido. “Eu digo que todos nós precisamos sonhar com a Amazônia. É um sonho coletivo, com seus rios, espíritos, povos, árvores, com todos os encantados que fazem parte desse mundo. A Amazônia não é só recurso. É um ser vivo. É lar de muitas pessoas, como eu, que amo esse lugar. Para mim, ela é uma mãe. É vida. E por isso continuamos firmes como protetores da Amazônia, com nossos corpos e nossos espíritos”, reforçou.

“Academia recebe os indígenas com humildade, amizade e sede de aprender com o saber que eles têm para compartilhar”

Vice-presidente da Academia Brasileira de Ciências para a região Sul, Ruben Oliven é professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seus interesses de pesquisa envolvem antropologia urbana, tradição e modernidade, identidades nacionais e regionais, música popular brasileira e norte-americana, consumo e significado simbólico do dinheiro.

Chamado pelo coordenador da sessão, André Baniwa, de “parente da causa”, modo como ele chama os estudiosos da cultura indígena, Oliven declarou-se honrado. “Como antropólogo, embora não estude populações indígenas, sempre me envolvi fortemente com essa temática. Acho que, de alguma maneira, todos nós somos parentes no sentido amplo, pois fazemos parte de uma única raça humana.”

Ruben Oliven declarou que sua área de atuação, a antropologia, envolve um profundo respeito pelos outros tipos de culturas e saberes. “Nessa reunião queremos deixar claro que a ABC tem o maior interesse em ouvi-los, não como uma curiosidade, mas como produtores de um saber próprio, que é tão respeitável quanto o saber científico. A ciência é uma das formas de explicar a realidade, mas existem outras.”

Ele destacou que tanto no Brasil como em outros países, como os Estados Unidos, existe um debate sobre “o que fazer” com os indígenas, com os “selvagens”. Nos Estados Unidos, um general americano disse que “a good Indian is a dead Indian” expondo uma visão de que os indígenas deveriam ser exterminados porque representavam um obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento. No Brasil, essa posição não era tão evidente, mas de alguma forma, também foi vivida. “Houve uma época, na década de 50, em que a população indígena foi tão reduzida que se dizia que caberia no Maracanã. Felizmente, a população indígena está crescendo novamente”, ressaltou o antropólogo.

Nesse contexto, Oliven destacou a atuação do general Rondon, que tinha origem indígena por parte de mãe e, por isso, tinha uma visão diferente das outras pessoas. Sua célebre frase “morrer, nunca; matar, jamais” foi fundamental para a época. Contudo, como boa parte da elite republicana, Rondon era positivista, filosofia que trouxe a ideia de progresso, que está refletida na bandeira nacional, e questionava o que fazer com aqueles que não seguiam essa visão. A “solução” mais difundida era “civilizá-los” e integrá-los à sociedade. A visão moderna, que defende que diferentes culturas devem conviver e ser respeitadas, não era comum na época.

Oliven destacou a atuação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em relação à causa indígena, que tem sido bastante ativa. A Constituição brasileira já garante os direitos territoriais dos povos indígenas, mas essa questão do que é considerado “território tradicionalmente ocupado” está sendo questionada. O Acadêmico relatou que a proposta de marco temporal só afirma que os indígenas têm direito à terra se estivessem nela desde a promulgação da Constituição – o que não faz sentido, considerando que muitos foram expulsos dessas terras”. A Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) optou por não enviar representantes à audiência, mas a ABA esteve presente. “Durante a audiência, ouvi a velha pergunta: ‘Mas não é muita terra para poucos indígenas?’ Quando isso era dito por juízes ou advogados, eu respondia: ‘O senhor sabe melhor do que ninguém que o povo brasileiro já decidiu isso e está na Constituição. Como juiz, o senhor deve aplicar a lei’.” Um ponto importante, na visão de Oliven é que, hoje em dia, os indígenas estão participando ativamente do debate. “São professores, advogados, com mestrado e doutorado, se expressam por conta própria.”

Além disso, Oliven apontou a questão das nações como relevante. A ideia de nação moderna é recente, originada com a Revolução Francesa. “A construção da nação implica a homogeneização, e, no caso dos indígenas, isso gera um ruído. O exemplo clássico dos yanomamis, que estão divididos entre o Brasil e a Venezuela, ilustra esse problema. Afinal, são brasileiros ou venezuelanos? Ou sempre foram yanomamis, muito antes de existirem os países Brasil e Venezuela?” Durante a Constituinte, segundo Ruben Oliven, foi discutida a ideia de incluir o termo “nações indígenas” no texto, mas isso causou um grande desconforto em muitos políticos e juristas. A solução foi falar em “povos indígenas”, para não ameaçar a ideia de uma única nação, que é a nação brasileira. “Além disso, há uma questão moral muito importante: o modo como um país trata suas minorias é um reflexo do seu progresso. Não basta ‘tolerar’ a minoria; é preciso permitir que ela se expresse livremente e se desenvolva a seu modo.”

Por fim, Oliven abordou a questão das riquezas e interações culturais, que sempre esteve presente na Amazônia. Práticas agrícolas modernas convivem com o conhecimento tradicional, que é extremamente importante. O artesanato indígena, que muitas vezes é visto apenas como produto para o turismo, é, na verdade, uma manifestação de ancestralidade. “A questão da língua também é relevante. Em várias partes do mundo, a nação busca a uniformização da língua”, apontou o antropólogo. No Brasil, durante o Estado Novo, o uso de outras línguas foi proibido, o que causou uma violência cultural enorme. Apesar disso, muitas dessas línguas não desapareceram. E o mesmo acontece com as línguas indígenas. “Foi muito bonito ver aqui os palestrantes indígenas começando suas falas em suas próprias línguas. Além de ser um gesto de amizade, é uma afirmação de sua cultura. Fico feliz que a Academia receba os indígenas com humildade, amizade e sede de aprender com o saber que eles têm para compartilhar”, finalizou o pesquisador.

Debate com a plateia: crime organizado, violência, tecnologia

O público do evento interagiu com os palestrantes e foi um ponto comum o agradecimento pela oportunidade extraordinária de ouvir os depoimentos. Segue um resumo de perguntas e respostas.

Ruben Oliven, Auricélia Arapium e Ivo Cipriano
  • Impacto do crime organizado

Hoje em dia, estamos cientes do problema das redes criminosas, como o PCC, o Comando Vermelho, e o tráfico de drogas. Como as nações indígenas, internamente, encaram esse desafio? Há uma preocupação sobre as janelas de oportunidade que a criminalidade pode aproveitar, justamente explorando o sentimento de revolta muito autêntico das nações indígenas.

Auricélia Arapium: Os megaprojetos de construção trazem consigo inúmeros outros problemas. São construídas várias estradas e por elas passa de tudo, inclusive drogas. A Amazônia inteira está comprometida, incluindo os territórios indígenas, com essas facções. Há problemas gravíssimos de alcoolismo nos territórios, principalmente onde passam as estradas, onde há um acesso mais rápido. E facções estão até recrutando lideranças. Quando não conseguem recrutar, eles matam.

Há facções que usam as aldeias para se esconder, para servir como depósitos de drogas. Estive em uma aldeia no Acre recentemente, e fiquei muito impactada com o grau de violência do alcoolismo. E não estou nem falando da cachaça: os parentes consomem álcool mesmo, misturam com água e bebem. E quando não têm, eles tomam gasolina. Se envenenam. É grave, muito grave. E mesmo com muitas denúncias, isso é invisibilizado.

Ivo Macuxi: Acompanho a questão do crime organizado há mais de sete anos. O que mais preocupa, enquanto defensores da causa e indígenas, é a captura do crime organizado pelas estruturas do próprio Estado. Dos municípios, do Estado e das instituições de segurança pública, inclusive. Isso é uma situação gravíssima. O Pará tem sido um exemplo clássico, os governos locais alteram a própria legislação para atender aos interesses de grupos. Então, é um caso emblemático

  • Impactos da exploração econômica

Parece que as problemáticas que não se limitam à pecuária e à soja. A exploração da bauxita e outras influências também impactam a região?

Auricélia Arapium: Na região Oeste do Pará, em Oriximiná, a empresa mineradora MRN está lá, principalmente no território quilombola, ameaçando, inclusive, o território dos parentes que estão em recente contato, como os Zo’é. Ameaçam também outros territórios indígenas na região.

Também há ameaça de planos de manejo florestal por parte do governo do estado do Pará. Naquela região de Oriximiná a Organização das Cooperativas (OC) está se expandindo muito e, inclusive, ameaçando territórios indígenas. Tivemos duas terras indígenas na região do Baixo Tapajós com portaria declaratória [ato administrativo que, no contexto da demarcação de terras indígenas, reconhece e delimita as áreas ocupadas por povos indígena] recentemente, e isso gerou um grande conflito devido ao interesse da mineração nessas terras. A mineração não está só no sul do Pará, ela já mapeou todo o estado.

  • Rede nacional para ação coletiva

Ouvindo sobre os desafios e problemas dos indígenas no Pará, percebi que esses são comuns aos que observamos nos indígenas de Minas Gerais. Vocês, enquanto comunidade, têm alguma forma de associação que permita que os indígenas do Pará, de Minas Gerais e de outros estados se unam para enfrentar os problemas de uma maneira sustentável e positiva para todos?

Auricélia Arapium: Todos os estados da Amazônia têm organizações indígenas. Infelizmente, no meu estado, o governo tem muito poder e conseguiu cooptar não apenas a organização dos povos indígenas, mas também as populações tradicionais e os quilombolas, devido ao interesse na venda do carbono. No entanto, o movimento cresce muito, pois há aqueles que não se aliaram a esse governo. Na minha região, no Oeste, temos a organização dos Munduruku do Alto Tapajós, do Médio Tapajós e do Baixo Tapajós, que é o Conselho Indígena do Baixo Tapajós. Então, podemos trocar contatos, caso necessário.

  • Impacto digital

As tecnologias digitais estão impactando fortemente a diversidade cultural nas cidades. Gostaria de saber se isso também ocorre na vida dos jovens indígenas, e em que extensão isso eventualmente está acontecendo.

Ivo Macuxi: Para nós, é uma questão de saúde pública, porque os jovens têm acesso a diversas informações e formas de se comunicar, muitas vezes sem entender o impacto dessa tecnologia. Então, como podemos orientar? Temos discutido isso inclusive com os jovens líderes, sobre a necessidade de uma reflexão coletiva sobre o impacto dessa cultura e dessa tecnologia nas nossas culturas. Como isso influencia até o pensamento indígena diante da sociedade, sua forma de se organizar e de se expressar no mundo.

Há muitos casos de jovens em situação de saúde comprometida, como depressão, por exemplo, e até casos de suicídio, em razão desse choque cultural. A tecnologia chega de forma agressiva, e, sem entender, o jovem acaba acessando muitas informações, o que gera um impacto tanto na sua cultura quanto em sua própria pessoa. Isso tem acontecido em diversas comunidades no Brasil, especialmente na Amazônia, com a chegada das antenas da empresa que facilita o acesso à internet.

Como podemos criar políticas públicas para discutir isso? Precisamos proteger os povos vulnerabilizados, os povos indígenas, diante dessa geopolítica da tecnologia, da mineração, e tudo mais. Precisamos fortalecer as políticas públicas para garantir uma proteção mínima, porque hoje essa proteção é inexistente, e isso dificulta cada vez mais a nossa vida.

Ruben Oliven: É óbvio que, ao entrarem em contato com o resto da sociedade, as populações indígenas vão usufruir ou ser prejudicadas por tudo o que a sociedade oferece. E é claro que algo como o celular vai ser um atrativo para qualquer criança que veja outras crianças tendo acesso a ele. A tecnologia moderna é um problema para todos nós, indígenas ou não indígenas. Eu também tenho uma visão saudosista; a gente brincava na rua, não tinha celular, nem televisão. Mas o mundo mudou. Agora temos televisão, celular, computador. E é muito difícil imaginar que algum grupo da sociedade não vá adotar essas tecnologias. Não dá para dizer: “Olha que bonito, eles não usam isso.” Eles vão usar, como é óbvio.

No entanto, ninguém deixa de fazer parte de seu grupo cultural por adotar elementos de outras culturas. As culturas estão sempre interagindo. Se olharmos, por exemplo, no Brasil, as grandes manifestações culturais, tipicamente brasileiras, muitas delas se originaram de influências externas. O futebol, que hoje é um símbolo nacional, foi um esporte bretão, tradicional da Inglaterra. Depois de um tempo, ele se tornou um grande jogo brasileiro.

Não faz sentido imaginar que um grupo indígena não tenha os mesmos problemas que a sociedade em geral. Claro que terá, e esses problemas se agravam no caso dos indígenas, por uma razão fundamental: o direito à terra ancestral. O Estado brasileiro tem muita dificuldade em garantir isso, mesmo com um governo atual que é bem diferente do governo anterior, que dizia não querer demarcar nada. Ainda assim, enfrenta dificuldades para demarcar terras por conta do Congresso e das pressões políticas. A questão das terras é fundamental.

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