Tony Tornado relembra sua trajetória (e influência) na cultura brasileira

Nesta sexta-feira (23.05), a TV Globo transmite o especial Tributo, em homenagem ao ator e cantor Tony Tornado. O artista, que completa 95 anos no dia 26 de maio, é considerado um dos reis da black music brasileira e profissional consagrada no cinema e na televisão. O programa conta ainda com a participação e depoimentos de nomes como Lázaro Ramos, Emicida e Camila Pitanga sobre a importância de Tony em suas vidas e na cultura nacional.

Abaixo reproduzimos na íntegra a entrevista concedida por Tony Tornado ao Volume 04 da ELLE Men Brasil, edição da qual foi também capa, em agosto de 2024.

Hail to the king

Logo que chega ao estúdio, Tony Tornado pede para desligar o ar-condicionado. “Já passei frio demais na Rússia, quando morava lá”, diz, brincando. Antônio Viana Gomes, 94 anos, morou também na Tchecoslováquia, México, Chile, Cuba e Coreia do Norte, entre outros países, durante os 12 anos em que esteve exilado na época da ditadura militar no Brasil. Sua vida, aliás, é cheia de mudanças. Aos 13 anos, disse para os pais que iria partir de Mirante do Paranapanema, no interior paulista, onde nasceu. “Mirante era pequena demais”, fala. Até para seus sonhos. “O circo aparecia por lá, e eu já queria subir no palco.” Sozinho, pulou de cidade em cidade, vivendo nas ruas, e chegou ao Rio de Janeiro, aos 15. “Foram tempos terríveis, dormindo na Central do Brasil, vendendo bala e fugindo da polícia.” Um dia, preso por ser ambulante, implorou: “Me arrumem uma escola”. Arrumaram. Tony foi enviado ao colégio de menores abandonados Agrícola Saboia Lima, em Rio das Flores, interior fluminense. Lá, esperou a maioridade chegar para poder, em 1949, entrar na Escola de Paraquedistas de Deodoro. Serviu ao lado de Silvio Santos, que lembra de conhecer como o “senhor Abravanel”, e integrou a primeira expedição brasileira de missão de paz da ONU, no Canal de Suez, Egito, em 1957.

Foram 13 anos no exército, com o lado artístico em segundo plano. Eram comuns as apresentações para amigos. Foi como ganhou coragem para cantar no programa Hoje é dia de rock, da Rádio Mayrink Veiga, e chamar a atenção do produtor artístico Carlos Imperial, da extinta TV Continental. No início da carreira musical, ele era Tony Checker, sobrenome emprestado de Chubby Checker, o rei do twist. Em seguida, entrou para a Companhia Brasiliana, um grupo de música, teatro e dança afro-brasileiros, com o qual rodou o mundo em turnê. 

Retrato de Tony Tornado para o Volume 04 da ELLE Men Brasil.

Tony Tornado veste camisa, Yohji Yamamoto, e coroa, Papelaria Instagram.
Foto: Juliana Rocha

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Em um dos shows, nos EUA, no fim de 1963, decidiu não seguir com os colegas e ficar por lá. Estava no Harlem, Nova York, mas sem passaporte, confiscado pelo, então, empresário. A solução foi viver ilegalmente de subempregos. No bairro, ele ganhou prestígio, passeava de Cadillac, era chamado de Comfort, mas corria para o lava-rápido e vestia um macacão ao menor sinal dos oficiais de imigração.

Em 1968, foi deportado. De novo no Rio, teve que se passar por gringo para se apresentar – e impressionar com o inglês – sob o pseudônimo de Johnny Bradford, na boate Porão 73, em Copacabana. Na mesma época, foi chamado pelo cantor Serguei para socorrer uma amiga, Janis Joplin, que estava caída na praia. Tony a carregou no colo e a colocou debaixo do chuveiro para curar a rebordosa. Depois de recuperada, só saiu do palco do Porão 73 ao amanhecer. 

“Era sobre ser negão, sabe? Não aceitar essa história de ser chamado de mulato, cidadão de cor, marrom bombom, escurinho”

A grande virada do artista foi em 1970. Tony já era Tornado, apelido dado pelo produtor Mariozinho Rocha, por dançar feito um furacão. No Festival Internacional da Canção, cantou a música “BR-3”, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar. Ao lado do Trio Ternura e do Quarteto Osmar Milito, conquistou o público e o primeiro lugar da competição – desbancando nomes como Luiz Gonzaga, Beth Carvalho e Jorge Ben Jor. No ano seguinte, em um Maracanãzinho lotado, quando Elis Regina cantou “Black is beautiful”, ele marcou a história da música brasileira com um gesto. “Ela disse: ‘Quero um homem de cor’. E eu pensei: ‘Sou eu’. Subi no palco e fiquei com o punho em riste.” Saiu algemado do show. 

Naquela mesma década, começou a sua incursão na dramaturgia. O início foi em programas humorísticos, como Os trapalhões, e desde 1975 passou a acumular papéis em mais de 20 novelas da TV Globo: Rodésio, de Roque Santeiro (1985), Pai Gil, de Vamp (1992), e Frei Tomé, em Amor Perfeito (2023), o mais recente deles. Nas séries, Tony foi Gregório Fortunato, em Agosto (1993), Zé Alma Grande, em Tenda dos milagres (1985), Lisboa, em A fórmula (2017), e Valdir, em Carcereiros (2017). Marcou também a memória de muitas crianças como o Avalanche, no infantil Caça talentos (1997). No cinema foi onde se consagrou, como Cristal, de Pixote: A lei do mais fraco (1980), filme de Hector Babenco, e Ganga Zumba, em Quilombo (1984), longa de Cacá Diegues.

Retrato de Tony Tornado para o Volume 04 da ELLE Men Brasil.

Tony Tornado.
Foto: Juliana Rocha

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Incansável, nunca largou a arte – ainda bem. Apresenta-se até hoje ao lado do filho mais novo (ele tem outras duas filhas), Lincoln Tornado, em um projeto de shows com a banda Funkessência. A caminho do centenário e com uma memória invejável, Tony é imbatível no conselho aos jovens e cita Nelson Rodrigues: “Envelheçam! É com o tempo que se entende a vida.” A seguir, ele divide mais alguns dos seus entendimentos.

Nos Estados Unidos, você dá de cara com o Movimento dos Direitos Civis. Como isso atravessa você?

Quando cheguei ao Harlem, estava em casa, porque só tinha negrada. Morei na Rua 125 e virei cafetão. O pimp é um cara elegante, que chega junto quando precisa. Tinha que proteger 20 prostitutas. Além da coisa folclórica, existia também a política. Eu já contestava o sistema no Brasil e tinha problemas com isso. Mas lá comecei a tomar conhecimento dos movimentos negros estadunidenses e de suas organizações. Ouvia Stokely Carmichael, Miriam Makeba e James Baldwin falar. Era sobre ser negão, sabe? Não aceitar essa história de ser chamado de mulato, de cidadão de cor, de marrom bombom, de escurinho. Vá se foder!

Quando você volta ao Brasil, espalha tais ideais no Movimento Black Rio. Como isso se deu?

Chego em 1969 e beijo o chão, como o papa. Estava de volta, ainda que fodido no país que me fodeu. O Black Rio já existia e eu fui para a frente dele, ao lado do cabeça, o Dom Filó. A gente aproveitava os bailes para passar as mensagens. Os caras dançando, cantando e, de repente, a gente puxava o microfone e dizia: “Ei, esse cabelo aí não é moda não, viu? É afirmação de raça. O seu cabelo é bom e enrola. O do branco é liso e cai. O nosso é forte e, por isso, faz toin, oin, oin.” Isso em plena ditadura militar.

“Aí chegou aquele cara negro, com o Sol pintado no peito nu e um cabelo para cima. Eu era um conjunto de coisas novas.”

A soul music estadunidense o acompanhou nesse retorno. Como ela impacta o som brasileiro?

Bastante. Curiosamente, o movimento da música black passa a buscar mais a história negra brasileira e os seus grandes nomes. Antes a gente estava conectado só com Little Richard e Nat King Cole. A partir daí, lembramos a importância de um Chico Rei, por exemplo, pancadão que liderou o movimento negro de escravos em Minas Gerais. Ele já deixava o cabelão black power para meter pepita de ouro ali dentro. Se era normal ser apenas braulino, como a gente chamava os adoradores de Brown – e tudo tem um quê de Brown, de Prince a Michael Jackson –, eu abrasileirei o negócio por aqui.

No Harlem, você conheceu Tim Maia, que você chama de Sebastião. O que ele deixou em você?

Tudo. O conheci intimamente. Musicalmente, confesso que gostava mais do Cassiano. Mas o Sebastião também preferia. O Tim era um gênio mal compreendido que alcançava o povo. O artista tem que estar onde o povo está. Vou usar um termo dele: ele sabia “dar na veia da doméstica”. Se todo maluco tem um careta do lado, eu era o careta dele. Ele me ligava às 3, 4 horas da madrugada para conversar. Ia até sua casa e, às vezes, nem falava nada. Era a viagem dele. Aí, o volume baixava, ele apagava e eu o botava na cama. 

Retrato de Tony Tornado para o Volume 04 da ELLE Men Brasil.

Tony Tornado veste casaco, acervo Minha Avó Tinha, e camisa, Fascynios.
Foto: Juliana Rocha

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No Festival da Canção de 1970, em que você ganhou um prêmio com a música “BR-3”, você subiu ao palco com jaqueta, botas e um Sol pintado no peito. De onde veio esse visual?

O Sol foi uma ideia minha e pintado pelo Eric Rzepecki, que foi maquiador da Globo. Ele adorou a proposta e queria entender o significado. Eu disse que queria representar o encontro das raças. Se você olhar bem, o desenho é de várias cores. No festival, todos usavam camisa “volta ao mundo” (uma camisa de tecido sintético lançada pela Valisere com esse nome) e aquele terno certinho. Tudo muito careta. Aí chegou aquele cara negro, com o Sol pintado no peito nu e um cabelo para cima. Eu era um conjunto de coisas novas.

Ser precursor custa caro. Quanto isso custou?

Hoje poderia ser milionário. Fui o primeiro cara a cantar soul no país. O mais antigo da parada. Me custou mesmo. Só no Dops (o Departamento de Ordem Política e Social foi uma polícia política, entre 1924 e 1983), tive nove entradas. Os caras chegavam em casa, chutavam a porta, me algemavam e levavam sem dó para a Praça 15. Encarava tudo com consciência. Você corre riscos por uma causa.

Em 1984, já ator, você protagoniza o herói Ganga Zumba, no filme Quilombo. Qual é a importância desse personagem?

Eu vinha da comédia. Pensa que fiquei dois anos falando o mesmo texto no programa Balança mas não cai (1982-1983). Era o mordomo Charles, que só dizia: “Yes, sir!” Fazia com a maior dignidade, porque nunca tive essa coisa de papel pequeno. Prefiro fazer um mordomo bem-feito do que um conde malfeito. Aí veio o Ganga Zumba (o primeiro líder do Quilombo dos Palmares), como um desafio, um trabalho refinado de dramaturgia, em meio a um elenco de mais de 2 mil pessoas. E eu ali, com aquela representatividade negra toda. Foi um marco para mim.

“O meu ídolo é o Lázaro Ramos. Quero mais é que se foda o blue eyes.”

Alguns personagens que você fez reproduziam estereótipos do homem negro. Como você lidou com isso?

A gente tem um problema com heróis. Cultuam o duque de Caxias, por exemplo. Na Tríplice Aliança, durante a Guerra do Paraguai, quando não tinha contingente suficiente, foi ele quem disse: “Vai lá e leva a negrada. Promete a eles que quem voltar deixa de ser escravo”. Colocaram fuzil na mão de todos e morreu gente negra pracaralho. Os oficiais? Todos brancos. Aí, quando esses homens negros voltaram, o que eles podiam fazer? Não eram mais escravos, não eram porra nenhuma. Viraram capitães-do-mato, prestando serviço para o senhor de engenho e caçando os irmãos. Esse é um negócio duro demais da nossa história. Conto isso porque fiz uma novela da Globo em que sofri muito ao interpretar um capitão-do-mato. Foi em Sinhá moça (1986). Me envolvi profundamente com aquilo. Hoje, se me chamam para fazer um papel desses, que dá porrada em negro, não vou de jeito nenhum.

As mudanças na televisão sobre a representação negra são recentes e ainda aquém. Como você as enxerga?

Fico feliz ao ver um negro protagonista. Veja só o elenco de Roque Santeiro. Sou o único preto, entre mais de 100 atores. A mudança é uma vitória conquistada com trabalho de base. Às vezes, fico triste porque não reconhecem. Não quero prêmio, homenagem, louvor. Saber quem começou é apenas a história. Nós tínhamos problemas sérios no passado. Pegaram a Sonia Braga, mandaram ela para a Bahia e jogaram laser nela para ficar preta e fazer a Gabriela. Tinha a Vera Manhães, sabe? Em A cabana do Pai Tomás (1969), botaram o Sérgio Cardoso com o rosto pintado de preto porque diziam que não tinha ator negro. O Milton (Gonçalves) já estava lá. Ele foi o primeiro ator da Globo, o 01. O que separa o artista negro do sucesso é a oportunidade. Talento a gente tem. O negro riu pouco, comeu pouco, aproveitou pouco. Ele bota para fora quando tem a possibilidade. O meu ídolo é o Lázaro Ramos. Quero mais é que se foda o blue eyes.

Você já disse que a música “BR-3” é a estrada da vida. O que a estrada da vida ensinou a você?

Dei a sorte de ser escolhido. Escolhido não, porque os escolhidos de verdade foram Tim Maia e Luiz Simonal. Eles não puderam. Mas eu estava no lugar certo, na hora exata e fui premiado. A BR-3, que hoje é a BR-040, era uma estrada perigosa. Mas a música remonta à história da vida, em que você vai e não sabe se volta. A vida é mesmo tortuosa, com empecilhos, alegrias e tristezas. E essa é a minha história também. Com dificuldades, mas com a liberdade e a conquista final.

Créditos:

Direção de criação: Luciano Schmitz
Fotos: Juliana Rocha
Edição de moda: Lucas Boccalão
Beleza: Cidoca Nogueira
Direção de arte: Anderson Rodriguez
Coordenação de produção moda: Diego Tofolo
Produção de moda: Thiago Torres, Laitânia Gomes e Vinicius Rodalm
Produção de arte: Corinne Werner
Produção executiva: Izabela Ribeiro
Tratamento de imagem: Telha Retouch

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