Identidade, ou, o sionismo desmistificado

A sociedade israelense só começará a se recuperar depois que todos os reféns voltarem para casaPixabay

Este texto foi elaborado a partir da livre interpretação de uma palestra. A ideia original era construí-lo no formato de uma entrevista, mas não houve tempo hábil. Portanto, as reflexões e desdobramentos que o leitor encontrará aqui são de inteira autoria e responsabilidade deste articulista. A questão do antissemitismo talvez seja o assunto mais em pauta no mundo atual. Mais obsessivamente em pauta vale dizer. É mandatório compreender por que? Fora o interesse obsessivo-compulsivo por Israel — quando existem uma variedade enorme de assuntos abordáveis, seja no tema dos conflitos armados, seja nas disputas territoriais entre as nações — chama atenção para bem além de uma análise psicopatológica. A palestra ao qual nos referimos acima foi a do historiador e educador Avraham Einfeld, que esteve recentemente aqui no Brasil. Idealizador do Taglit Birthright, presidente emérito do Hillel Internacional — instituição sem fins lucrativos ligada a educação e promoção de valores humanitários judaicos. Infeld veio como convidado especial para a inauguração daquela instituição em São Paulo. Einfeld não fez uma palestra convencional. O convidado passou uma hora explicando sua interessante e peculiar trajetória até o seu estabelecimento definitivo em Israel. Quem esperava uma exposição clássica presenciou uma pessoa veemente, com alternâncias contundentes na voz que chegou a provocar alguns sobressaltos na platéia. Infeld usou a comunicação dramática como a chave para uma ação pedagógica eficaz. O uso enfático e da locução e a forma teatral de interação, gerou uma performance por vezes bem humorada, a qual deixou o público sob tensão e expectativas crescentes.  Filho de judeus europeus que emigravam para a Africa (seu pai, um judeu ateu, foi um dos fundadores de uma entidade judaica secular de orientação ideológica à esquerda e descobriu cedo que estava destinado a emigrar para a Terra Santa. Um dia, conta Avraham, ouviu seu pai chorando copiosamente ao ouvir uma transmissão de rádio. Com apenas 5 anos ficou intrigado com a cena. A data: 14 de maio de 1948. Ao chegar perto da mãe que se encontrava em outro lugar da casa soube que as lágrimas eram vertidas porque ele acabara de ouvir que o Moderno Estado de Israel havia sido fundado. Na verdade, refundado depois de um exílio de mais de 2.000 anos. Infeld obviamente não tinha a menor ideia do que era um Estado, muito menos acerca de seu significado. Então, adolescente, seu pai lhe disse que ele deveria ir para lá. Anuncio comunicado de forma dialógica: ‘Está decidido, você vai, tchau!’ Uma de suas primeiras experiencias em Israel foi em Tel Aviv. Ao visitar a cidade ele não tinha a menor ideia de era o dia no qual o País parava. De repente, um País em silêncio: ônibus, pessoas nas ruas, lojas, empresas, carros no meio da rua congelados, como se o tempo estivesse sido modificado por alguma onda gravitacional. Em vão tentou interpelar algumas pessoas, até que alguém aceitou interromper o silêncio para lhe dizer  “hoje é Yom Hashoa (Dia de lembrança das vítimas do Holocausto. Ficou impressionado com aquele tipo de união, de consenso absoluto, uma consciência instantânea e espontânea que ele nunca testemunhara anteriormente.   Sobre a epidêmica situação atual de antissemitismo depois do 07 de outubro, Infeld fez uma provocação para a audiência: “judeus sempre sofreram, agora é a vez de vocês.” E então atalhou: qual afinal é o significado de um Estado Judaico? E respondeu em seguida: renascimento dos judeus. Não um renascer num passado remoto, mas um permanente renascer. Uma ressignificação continua.  Narrou suas experiencias como jovem líder nos USA e quando estudante em Londres, onde fora designado para seguir a tradição familiar de físicos que se destacaram mo meio cientifico, mas acabou cursando História, onde se graduou.    E então Infeld promulgou a frase que ecoou e estremeceu a platéia composta por um público razoavelmente heterogêneo : judaísmo não é uma religião! E a repetiu várias vezes de novo em tom provocador: Judaísmo não é uma religião. Ora, o que seria então? E como chegamos a atual confusão?  Segundo Infeld, a atual transformação do estatuto dos judeus no mundo começou há 260 anos, quando a Europa mudou completamente depois da Revolução Francesa. Então listou algumas reações e o que ele chamou de 5 pernas, ou pilares, para compreender a identidade judaica. A primeira reação dos judeus europeus frente às transformações que testemunhavam na Europa foi: eu ainda existo. Apesar de tudo eu ainda estou aqui. E rejeita-se assim a modernidade enquanto se espera a redenção, sempre dentro de guetos. Por que? A segunda reação: o tempo passou e a redenção ainda não chegou, a percepção do retardo da vinda de uma era onde haveria uma redenção universal conforme o cumprimento das profecias. A assimilação, ou substituição da identidade judaica por uma cidadania laica, começa a surgir como uma resposta a esta frustração: a integração com a modernidade e o abandono das tradições. Aparece uma terceira reação: aceita-se a modernidade e seu modelo acoplado de sociedade, abraça-se o espirito do tempo, sem a abolição completa do sentimento de pertencimento étnico, junto com a consciência que o modelo de crença adotado é distinto das nações católicas e protestantes prevalentes na Europa. E, finalmente, não uma quarta reação, mas uma ação. Na Europa, testemunha-se a formação de Países que contam com um exército, suprema corte, constituições, organizações e instituições que regulamentam o Estado. Ela não começa, mas toma forma com as ideias do húngaro Thedor Herzl em Budapest: é preciso constituir uma nação. Era o renascimento de uma ideia! Surge a ideia de retorno a Zion. E por que não um País dos judeus? O sionismo moderno toma forma. A memória como cola da identidade: Cria-se então uma cultura onde as tradições estão fundamentadas através da memória. De uma memória coletiva que começa pela experiencia coletiva no Sinai há 3000 anos. E assim temos o primeiro pilar daquilo que historiador chamou de os 5 pilares da identidade judaica. O primeiro é a memória. A memória que não vem como mais uma camada arqueológica hegeliana que se instala sobre as ruínas da camada precedente, ou a que varre para sedimentar-se em cima e assepticamente substitui-la. Mas sim a lembrança de uma trajetória comum que conserva um leitmotiv. A ideia de um tempo linear. Os judeus saíram como escravos e na jornada através do Sinai formam uma família. Neste sentido, uma conversão não é senão uma adoção de um novo filho que passa a integrar essa família.  Nas várias legislações europeias os Judeus foram frequentemente reconhecidos – e desumanizados – como cidadãos de segunda classe,  deslocadas, párias, sem refúgio, proibidos de possuir terras, discriminados e impedidos de exercer várias profissões e atividades. Não se trata de vitimização, mas ser fiel ao contexto histórico. Portanto, faz todo sentido que esse povo tenha particular e natural solidariedade com os estrangeiros e refugiados. Há, inclusive, uma mitzvá (uma boa ação) expressa textualmente no texto bíblico de “ser gentil com estranhos”, porque “o estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás; pois estrangeiros fostes na terra do Egito.” (Êxodo 22:21). Uma mensagem poderosa que contém um expressivo significado simbólico, uma vez que os judeus conhecem muito bem esse sentimento. Neste aspecto que o historiador faz uma inflexão importante: não se trata da memória histórica, da recordação per se, mas sim de saber o que cada sujeito é dentro dessa historia, qual afinal o grau de pertencimento individual à ela? Portanto, não se trata da memória como recordação, mas a memória como presença subjetiva de qual o lugar de cada sujeito na história.  O segundo dos 5 pilares é a família, a família que foi constituída ao sair da opressão egípcia da condição de escravos para homens livres.  O terceiro pilar reporta-se ao Sinai: portanto reviver a experiencia coletiva que o povo teve na trajetória até o Sinai. O quarto pilar pode ser dividido em dois : a terra de Israel (Eretz) e o Estado de Israel. E finalmente o quinto, a retomada da língua: o hebraico. Reconhecer a língua hebraica como um solo comum é atribuir-lhe o poder de costurar acordos e obter consensos,  também aperfeiçoar o entendimento dos problemas e dissensos. E qual a importância desta chave quíntupla? Para Avraham é essencial reconhecer pelo menos três destes pilares para que haja união. E sem essa união (ou unificação) facilitar-se-ia o plano de populistas e autocratas de todos os tipos, cujo empenho incansável é criar cada vez mais divisões, com as implicações e o custo externo e interno das secessões. Judeus são muito heterogêneos, radicalmente diversos, apesar disso o objetivo de reconhecer elementos fundantes e constitutivos desta identidade não é produzir homogeneidade. Unanimidade, a qual, de certa forma, descaracterizaria a riqueza intelectual e espiritual hebraica.   O objetivo é que se alcance algum grau de união, sem uniformização.   Penso que faltou mencionar o papel dos judeus da diáspora, doravante os “cidadãos honorários de Israel”, uma vez que a tormenta contemporânea não apenas respingou nas comunidades mundo afora, como trouxe uma questão vital: quão relevantes são e quão conectados eles estão com as decisões tomadas pelo Estado que também os representa.   Estas comunidades de cidadãos honorários, que vivem fora das fronteiras físicas de Israel e que também amam e ajudaram a construir os países que os acolheram, devem ou não ter mais voz nas decisões do estado judaico? Devem participar diretamente dos sufrágios?  Oxalá que se possa reconfigurar o aforismo, “dois judeus, três opiniões”, para “muitas opiniões, alguns consensos.” O mundo precisa, a humanidade merece.   O povo do livro passa por nova e sofrega provação, enfrentando uma enorme incompreensão, e nada menos que o surpreendente renascimento do filonazismo e de uma subsidiada e estridente juventude hitlerista.   O assunto, portanto, adquire um simbolismo histórico dramático. Ultrapassa a dimensão de um só povo, de uma só terra, de uma só cultura, etnia ou religião, trata-se enfim de definir qual será doravante o estatuto da civilização ocidental e consequentemente para onde caminhará a humanidade.   Uma hora dessas precisaremos escolher!

Adicionar aos favoritos o Link permanente.